As primeiras greves
* Por Marco Albertim
Recife não perdera sua feição colonial. O Rio Capibaribe, no remanso de suas águas limpas, segue o ritmo monótono do comércio em sua margem. Negocia-se toda espécie de couros; sequer inocentes jegues são poupados. Engenhos e banguês fecham, dão lugar a usinas em condições de pagar aos comissários pela armazenagem do açúcar; de produzir, mesmo com os baixos preços na venda ao comprador estrangeiro. Com o fim da escravidão, o senhor de engenho vê sua lavoura definhar, sumir ante pragas várias. Homens e mulheres, na peregrinação agoniada das estradas, não têm onde morar; povoam mocambos nos alagados e beiras do rio. Há destilarias de álcool e uma nascente indústria de fiação, de tecelagem, alimentadas pela produção de algodão. Há ainda a produção de óleos vegetais. Operários trabalham sob a mira de fuzis, de desconfiados jagunços.
Recife respira mal, mesmo com as águas transparentes do Capibaribe. Nas margens, no centro, as locomotivas da Great Western ronronam indiferentes à fuligem no rosto dos operários. É 1903. Estoura a primeira greve dos operários dos trilhos. Não demora dois anos, é a vez do proletariado da indústria do fumo. Não é um começo esperançoso de século. Os estivadores, no ano seguinte, também param. No porto, os patrões assistem operários cansados, inda que dispostos. Há um acordo entre uns e outros. Com o tempo, as palavras somem no sopro da brisa que vem do porto. A greve é retomada. Em seu rastro fresco, seguem carroceiros, ferroviários, padeiros, carvoeiros, carregadores, cocheiros, talhadores, condutores, gentes das refinadoras do açúcar, das fábricas de sabão.
A cidade, em suas calçadas, entrega-se a lenta resistência de homens e mulheres que têm fome. Logo a pachorra é sacudida pela violência da cavalaria do governo. Há fuzilarias. Líderes são presos. A resistência dura quinze dias. É 1909. Ferroviários voltam à greve. Têm o apoio de gentes do comércio. Os ingleses da Great Western atendem a seus pedidos.
Dez anos antes, gorara na Constituinte Estadual a idéia de oito horas de trabalho diário. Cinco anos depois, a legislação operária profissional, proposta pela Corporação Operária Cristã, vai a pique.
O estado vive sob o tacão de Rosa e Silva. Vindo do Partido Conservador, logo adere ao republicanismo com a chegada da República. Deputado, ministro da Justiça e vice-presidente de Campos Sales. Viaja à Europa, gasta fortunas nos cassinos de Monte Carlo, na balouçante Paris. Nas venturas do poder, torna-se senador. De volta das viagens, sequer desce do navio, recebendo coronéis, administradores e chefes de polícia no convés, no camarote; dali, suas ordens são cumpridas.
O Leão do Norte tem contra si José Mariano e José Maria de Albuquerque Melo, jornalistas de A Província. Delmiro Gouveia une-se aos dois, mas não evita o fuzilamento de ambos por oficiais da Polícia Militar. Delmiro, por ordem do prefeito Esmeraldino Torres Ferreira, sofre perdas de suas peles no Mercado Modelo do Derby. Viaja ao Rio de Janeiro para conversar com o Leão, então vice-presidente; ouve ameaças e exigências, e sabe que João Batista Rosa, pistoleiro conhecido como Sabe-Tudo, fora contratado para assassiná-lo.
Reencontram-se na rua do Ouvidor. Delmiro não hesita em aplicar bengaladas no Leão, que foge para o interior de uma loja. Não demora, o mercado construído por ele é incendiado. Junto com seu sócio, Napoleão Duarte, é preso e insultado depois de ter sua casa cercada por cinquenta praças da polícia. Há protestos. Delmiro é solto por um habeas corpus.
- Se há entre nós um falido, o falido é S. Exa., político falido de senso moral, de escrúpulo, de critério e de tudo – acusa o Rei das Peles.
Com Hermes da Fonseca na presidência, Rosa e Silva não tem apoio para se empossar governador mediante fraude nas cédulas de votação abertas. Há escaramuças, fuzilarias nos comícios do rival de Silva, Dantas Barreto. Oito são mortos na Praça Saldanha Marinho. Estácio Coimbra, no governo de Pernambuco, foge temendo a turba.
João da Costa Bezerra de Carvalho, padre e vice-presidente do Senado Estadual, empossa Dantas Barreto.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
* Por Marco Albertim
Recife não perdera sua feição colonial. O Rio Capibaribe, no remanso de suas águas limpas, segue o ritmo monótono do comércio em sua margem. Negocia-se toda espécie de couros; sequer inocentes jegues são poupados. Engenhos e banguês fecham, dão lugar a usinas em condições de pagar aos comissários pela armazenagem do açúcar; de produzir, mesmo com os baixos preços na venda ao comprador estrangeiro. Com o fim da escravidão, o senhor de engenho vê sua lavoura definhar, sumir ante pragas várias. Homens e mulheres, na peregrinação agoniada das estradas, não têm onde morar; povoam mocambos nos alagados e beiras do rio. Há destilarias de álcool e uma nascente indústria de fiação, de tecelagem, alimentadas pela produção de algodão. Há ainda a produção de óleos vegetais. Operários trabalham sob a mira de fuzis, de desconfiados jagunços.
Recife respira mal, mesmo com as águas transparentes do Capibaribe. Nas margens, no centro, as locomotivas da Great Western ronronam indiferentes à fuligem no rosto dos operários. É 1903. Estoura a primeira greve dos operários dos trilhos. Não demora dois anos, é a vez do proletariado da indústria do fumo. Não é um começo esperançoso de século. Os estivadores, no ano seguinte, também param. No porto, os patrões assistem operários cansados, inda que dispostos. Há um acordo entre uns e outros. Com o tempo, as palavras somem no sopro da brisa que vem do porto. A greve é retomada. Em seu rastro fresco, seguem carroceiros, ferroviários, padeiros, carvoeiros, carregadores, cocheiros, talhadores, condutores, gentes das refinadoras do açúcar, das fábricas de sabão.
A cidade, em suas calçadas, entrega-se a lenta resistência de homens e mulheres que têm fome. Logo a pachorra é sacudida pela violência da cavalaria do governo. Há fuzilarias. Líderes são presos. A resistência dura quinze dias. É 1909. Ferroviários voltam à greve. Têm o apoio de gentes do comércio. Os ingleses da Great Western atendem a seus pedidos.
Dez anos antes, gorara na Constituinte Estadual a idéia de oito horas de trabalho diário. Cinco anos depois, a legislação operária profissional, proposta pela Corporação Operária Cristã, vai a pique.
O estado vive sob o tacão de Rosa e Silva. Vindo do Partido Conservador, logo adere ao republicanismo com a chegada da República. Deputado, ministro da Justiça e vice-presidente de Campos Sales. Viaja à Europa, gasta fortunas nos cassinos de Monte Carlo, na balouçante Paris. Nas venturas do poder, torna-se senador. De volta das viagens, sequer desce do navio, recebendo coronéis, administradores e chefes de polícia no convés, no camarote; dali, suas ordens são cumpridas.
O Leão do Norte tem contra si José Mariano e José Maria de Albuquerque Melo, jornalistas de A Província. Delmiro Gouveia une-se aos dois, mas não evita o fuzilamento de ambos por oficiais da Polícia Militar. Delmiro, por ordem do prefeito Esmeraldino Torres Ferreira, sofre perdas de suas peles no Mercado Modelo do Derby. Viaja ao Rio de Janeiro para conversar com o Leão, então vice-presidente; ouve ameaças e exigências, e sabe que João Batista Rosa, pistoleiro conhecido como Sabe-Tudo, fora contratado para assassiná-lo.
Reencontram-se na rua do Ouvidor. Delmiro não hesita em aplicar bengaladas no Leão, que foge para o interior de uma loja. Não demora, o mercado construído por ele é incendiado. Junto com seu sócio, Napoleão Duarte, é preso e insultado depois de ter sua casa cercada por cinquenta praças da polícia. Há protestos. Delmiro é solto por um habeas corpus.
- Se há entre nós um falido, o falido é S. Exa., político falido de senso moral, de escrúpulo, de critério e de tudo – acusa o Rei das Peles.
Com Hermes da Fonseca na presidência, Rosa e Silva não tem apoio para se empossar governador mediante fraude nas cédulas de votação abertas. Há escaramuças, fuzilarias nos comícios do rival de Silva, Dantas Barreto. Oito são mortos na Praça Saldanha Marinho. Estácio Coimbra, no governo de Pernambuco, foge temendo a turba.
João da Costa Bezerra de Carvalho, padre e vice-presidente do Senado Estadual, empossa Dantas Barreto.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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