Amor invernal
* Por Mara Narciso
No Brasil escravagista, completar sessenta anos significava ser lançado às ruas. Um negro dessa idade não valia o prato de comida que ingeria, e era posto fora. Desde então, fazer sessenta anos não é nada, o ruim é tornar-se sexagenário. Fechei essa idade exatamente na ocasião da morte do meu marido. A moléstia dele, um câncer nos rins diagnosticado já com metástase, foi rápida, mas muito sofrida. Fiquei com meus oito filhos e doze netos.
Os meus filhos são seis homens altos e fortes, trabalhadores e dedicados as suas famílias. As minhas duas filhas logo se casaram, então eu me vi só. A minha casa, onde houvera grande movimento, ficava deserta durante a semana, movimentando-se nos sábados e domingos.
Era preciso preencher a vida para não cair em nostalgia recorrente, então criei uma nova rotina para mim. Aumentei a minha atividade religiosa, faço ginástica, caminhada, cuido da saúde, da aparência, e me visto bem. Fiz algumas viagens em família e em excursão, entrei na terceira idade do SESC, inventei muitas coisas e amizades novas, e mais recentemente terminei o curso de informática. Os anos foram passando e eu preenchendo cada fresta com novidades para não viver uma existência inútil. Gosto de cozinhar, mas não é uma coisa que me preencha. Preciso estimular meu intelecto com leituras, assim gosto de estudar, aprender, andar por novos caminhos, para me sentir motivada, desperta, desafiada.
Meus filhos vêm sempre me visitar. Os netos povoam nosso quintal e fazenda. Mesmo assim, é pouco, então fui aprender yoga e dança de salão. Adorei aqueles rodopios, e quis mostrar a mim mesma que era capaz de dançar lépida e desenvolta. Senti-me feliz e estimulada pela música, pelos outros pares, e principalmente por um senhor muito simpático e galante (palavra antiga), que se tornou meu par constante em todas as aulas. Duas vezes por semana nos encontrávamos e dançávamos. Ele não é bonito, sendo magro, de cor clara, cabelos grisalhos e lisos e de lindos olhos castanhos amendoados.
Eu, com 75 anos, e quinze anos de viuvez, e ele, dez anos mais moço, divorciado há vários anos, estava só, e gostou de mim. Tivemos uma identificação muito grande, uma afinidade espiritual e corporal para a dança, que me fizeram entusiasmada. Passamos a conversar ao telefone todos os dias e sem mais, começamos a namorar.
O senhor não tinha posses, mas possuía moradia própria e uma aposentadoria que supria as suas necessidades. Minha situação financeira era melhor do que a dele. Não queríamos pensar em nada, apenas nos encontrar e usufruir o que um gostar profundo pode proporcionar.
A cada dia, sentíamos o sentimento crescendo, assim como a vontade de formalizar o nosso encontro. Olhávamos um para o outro e sentíamos como era sublime o nosso amor. Com tanta emoção brotando, os fatos banais mostravam-se extraordinários. A expectativa da chegada, a sensação agradável de ver, de estar junto se contrapunha com a agonia da espera. Engana-se aquele que pensa que só os jovens se apaixonam. Eu me apaixonei e senti que era correspondida.
O nosso êxtase chegava de várias maneiras e a dança era uma delas. O meu par me fazia flutuar pelo salão, e pela vida. Sentia-me solta, embriagada pela presença dele, sentindo a sua mão na minha mão, nas minhas costas, me conduzindo pelo salão e vida afora. Dançar era perder o peso corporal, era sentir-me voar em louca felicidade.
Ele agia de forma educada, com uma delicadeza e meiguice que me deixavam suave, quase em órbita. Custei a acreditar que aquilo acontecia comigo. Era um relacionamento tão pleno, uma afeição de tal concretude, que é bem possível não ter similar estampado em nenhum filme, livro ou novela.
Sou uma senhora independente intelectual e financeiramente, não rica, mas com recursos para pagar as minhas contas sem a ajuda de ninguém. Sou capaz de ocupar-me de todos os cuidados com a fazenda, com a minha casa e demais obrigações, sem precisar de os filhos me auxiliarem, embora me ajudem sob a minha orientação.
Quando resolvemos nos casar, meus oito filhos proibiram, alegando diferença de idade, oportunismo, e outras palavras menos amenas. Fizemos de tudo, argumentamos, reunimo-nos com todos, mas fomos votos vencidos. Não suportamos a pressão de tantos homens jovens, fortes e resolvidos. Não houve maneira de evitar o fim. Rompemos, e ele afastou-se. Procuro não atender aos seus chamados. Estou quase morta, e como não há outro jeito, anestesiam-me os remédios faixa preta. Apenas eles são meus amigos.
* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.
* Por Mara Narciso
No Brasil escravagista, completar sessenta anos significava ser lançado às ruas. Um negro dessa idade não valia o prato de comida que ingeria, e era posto fora. Desde então, fazer sessenta anos não é nada, o ruim é tornar-se sexagenário. Fechei essa idade exatamente na ocasião da morte do meu marido. A moléstia dele, um câncer nos rins diagnosticado já com metástase, foi rápida, mas muito sofrida. Fiquei com meus oito filhos e doze netos.
Os meus filhos são seis homens altos e fortes, trabalhadores e dedicados as suas famílias. As minhas duas filhas logo se casaram, então eu me vi só. A minha casa, onde houvera grande movimento, ficava deserta durante a semana, movimentando-se nos sábados e domingos.
Era preciso preencher a vida para não cair em nostalgia recorrente, então criei uma nova rotina para mim. Aumentei a minha atividade religiosa, faço ginástica, caminhada, cuido da saúde, da aparência, e me visto bem. Fiz algumas viagens em família e em excursão, entrei na terceira idade do SESC, inventei muitas coisas e amizades novas, e mais recentemente terminei o curso de informática. Os anos foram passando e eu preenchendo cada fresta com novidades para não viver uma existência inútil. Gosto de cozinhar, mas não é uma coisa que me preencha. Preciso estimular meu intelecto com leituras, assim gosto de estudar, aprender, andar por novos caminhos, para me sentir motivada, desperta, desafiada.
Meus filhos vêm sempre me visitar. Os netos povoam nosso quintal e fazenda. Mesmo assim, é pouco, então fui aprender yoga e dança de salão. Adorei aqueles rodopios, e quis mostrar a mim mesma que era capaz de dançar lépida e desenvolta. Senti-me feliz e estimulada pela música, pelos outros pares, e principalmente por um senhor muito simpático e galante (palavra antiga), que se tornou meu par constante em todas as aulas. Duas vezes por semana nos encontrávamos e dançávamos. Ele não é bonito, sendo magro, de cor clara, cabelos grisalhos e lisos e de lindos olhos castanhos amendoados.
Eu, com 75 anos, e quinze anos de viuvez, e ele, dez anos mais moço, divorciado há vários anos, estava só, e gostou de mim. Tivemos uma identificação muito grande, uma afinidade espiritual e corporal para a dança, que me fizeram entusiasmada. Passamos a conversar ao telefone todos os dias e sem mais, começamos a namorar.
O senhor não tinha posses, mas possuía moradia própria e uma aposentadoria que supria as suas necessidades. Minha situação financeira era melhor do que a dele. Não queríamos pensar em nada, apenas nos encontrar e usufruir o que um gostar profundo pode proporcionar.
A cada dia, sentíamos o sentimento crescendo, assim como a vontade de formalizar o nosso encontro. Olhávamos um para o outro e sentíamos como era sublime o nosso amor. Com tanta emoção brotando, os fatos banais mostravam-se extraordinários. A expectativa da chegada, a sensação agradável de ver, de estar junto se contrapunha com a agonia da espera. Engana-se aquele que pensa que só os jovens se apaixonam. Eu me apaixonei e senti que era correspondida.
O nosso êxtase chegava de várias maneiras e a dança era uma delas. O meu par me fazia flutuar pelo salão, e pela vida. Sentia-me solta, embriagada pela presença dele, sentindo a sua mão na minha mão, nas minhas costas, me conduzindo pelo salão e vida afora. Dançar era perder o peso corporal, era sentir-me voar em louca felicidade.
Ele agia de forma educada, com uma delicadeza e meiguice que me deixavam suave, quase em órbita. Custei a acreditar que aquilo acontecia comigo. Era um relacionamento tão pleno, uma afeição de tal concretude, que é bem possível não ter similar estampado em nenhum filme, livro ou novela.
Sou uma senhora independente intelectual e financeiramente, não rica, mas com recursos para pagar as minhas contas sem a ajuda de ninguém. Sou capaz de ocupar-me de todos os cuidados com a fazenda, com a minha casa e demais obrigações, sem precisar de os filhos me auxiliarem, embora me ajudem sob a minha orientação.
Quando resolvemos nos casar, meus oito filhos proibiram, alegando diferença de idade, oportunismo, e outras palavras menos amenas. Fizemos de tudo, argumentamos, reunimo-nos com todos, mas fomos votos vencidos. Não suportamos a pressão de tantos homens jovens, fortes e resolvidos. Não houve maneira de evitar o fim. Rompemos, e ele afastou-se. Procuro não atender aos seus chamados. Estou quase morta, e como não há outro jeito, anestesiam-me os remédios faixa preta. Apenas eles são meus amigos.
* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.
Seu texto relata o despertar do amor num estágio de vida em que muitos acreditam que o coração também se aposenta. O final melancólico, e por que não dizer, dramático, retrata um tempo em que os papéis de pais e filhos se invertem.
ResponderExcluirTotalmente real.
Abraços!
Triste essa história, Mara. Real ou não, o fato é que espelha muitas outras deste mundo cheio de regras, convenções crenças anacrônicas. Parabéns pelo texto e um grande abraço.
ResponderExcluirA felicidade incomoda e alguns insistem que o amor tem hora para ser vivido. Uma pena! Seu texto retrata isso, mas também mostra que é possível ser feliz em qualquer idade. Beijão e parabéns, Mara!
ResponderExcluirLindo, Mara, muito profundo o texto. Pena que convenções e preconceito tenham interferido e destruído a união do casal.
ResponderExcluirAbraço!
Final melancólico para um romance no fim da vida. Podendo haver felicidade, as regras a proibem. Raro não é. Obrigada meninas e menino pelos comentários.
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