Há um mar em Juliana
* Por Eduardo Murta
As luzes estão apagadas. E Juliana quer, simplesmente, esquecer. Soa a uma eternidade cada piscar de olhos. Pudesse, desplugaria o mundo ali, num ato seco, breve e sem atalhos. Remédio não havia. Ela se estica sobre a cama, move as mãos lateralmente, em forma de cruz. Suspira, imitando os apaixonados. E decide: vai limpar as gavetas, revirar os armários. Começa pela coleção de sapatos. O vermelho, com o salto quebrado, separa. Que se vá também o creme, com a borda descolada. E a sandália prateada, do baile de formatura.
Uma caixa mais, e Juliana chega às fotos. Chapéu de rodeio e a pose, risonha, em preto e branco, sobre o cavalinho de pau do parque. O escândalo nos braços do Papai Noel de vitrine. É uma imagem, pouco à frente, que a tomará como uma espiral a varrer folhas de agosto. Juliana faz menção de guardá-la. No caminho, desiste. Estão lá o pai, a mãe, Ju e a irmã. O cachorro Segredo completa o quadro. Ao fundo, o mar. Era a primeira viagem ao litoral. Um dos pés está ligeiramente adernado. O outro ao ar, como em desequilíbrio.
Era exatamente assim que Juliana sentia o mundo agora. E a impressão que guardou do mar no primeiro contato a visitava ali. A lembrança das mãos espalmadas sobre as sobrancelhas de menina. O giro lento do pescoço duma ponta à outra. E a síntese, segura, descrita à mãe: 'O mar é grande. Mas não é assim tão grande como eles falam'. Sem dar tempo à resposta, lançou às águas a bóia moldada em câmara de pneu, com remendos à borda. Só compreenderia, anos mais tarde, o significado do riso de canto de boca que a mãe lhe devolvera.
Era nesse mesmo tom que reagiria, mais à frente, ao universo povoado de duendes, fadas e bruxas que o filho lhe revelava às portas das noites de sono. Tudo em tom de segredo. Juliana, então, inclina a foto, já sem cores vivas, diante do rosto. A cabeça em rotação, acompanhando o movimento. Feito um barco. Corre sobre ela a ponta da unha esmaltada. Como se tocasse a areia. É ao mar que voltará, define. Seguirá na manhãzinha da terça. Sem dizer ao marido, dar pistas ao filho ou ciência ao trabalho. Revelara tanto, até então, que se permitia seguir assim. Sem palavra que fosse.
Estava exausta e, por escolha, só. Não revelaria, nem ao marido, nem ao filho, a sentença que ouvira naquela tarde. O sinto muito definitivo do médico. A pilha de exames a que se submetera. Não era nada, não era nada, limitou-se a descrever. Ar de quem se manteria, com naturalidade, iluminando a casa. Decidira, afinal, poupá-los. Aprontou uma malinha, em silêncio, na madrugada. A escova de dentes ficaria para trás. Separou fotos, muitas fotos. Uma sandália baixa. Uma caneta. O cigarro esqueceria sobre a mesa. Batons, batons, suas loções finas, não faziam mais sentido. Perfumes, menos ainda.
O lenço em vermelho forte, da Espanha, a acompanharia. Foi com ele ao pescoço que Juliana tomou a estrada em busca do litoral. Vidros abertos. E como era a ela mesma que mais precisava ouvir, abriria mão da música pelo trajeto afora. As fotos ela deixou sobre o outro banco dianteiro. Foi lançando, uma a uma, às margens. Como se desconstruísse o que levara uma vida a alinhavar. Havia gente cujo nome se transformara num mistério instigante. Outros, que amava com uma solidez inabalável. Aportou, então, no reencontro com o mar, segurando uma única foto.
A imagem era a que a desafiara, horas atrás. Os pés em ligeiro desequilíbrio. Mais que isso: a impressão sobre a vastidão das águas, que comparava ao sentimento que lhe assombrava naquele instante. A saudade, resumia, era feito um oceano. Como cabia, sem transbordar, num território tão pequenino quanto o coração? Por certo, imitava o mar. Aos olhos de menina, não lhe parecia aquele horizonte gigantesco de que falavam os livros. Nenhum mencionava a solidão, porém, para além do olhar. Ju caminhou ao estertor das marés, deixou que as ondas lhe tocassem os pés.
E sentiu que estava pronta para a volta. Antes, transformou a foto num cartão-postal. Subiu a serra em paciência de quem esperava que recebessem, primeiro, sua mensagem. Lá escreveu, no costado: 'Há um oceano de saudade em mim'. Foi parando a cada cidadezinha. Face ao vento. Agora, com música. E nenhuma foto mais para lançar à estrada. Era ao destino que entregava suas mãos.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
As luzes estão apagadas. E Juliana quer, simplesmente, esquecer. Soa a uma eternidade cada piscar de olhos. Pudesse, desplugaria o mundo ali, num ato seco, breve e sem atalhos. Remédio não havia. Ela se estica sobre a cama, move as mãos lateralmente, em forma de cruz. Suspira, imitando os apaixonados. E decide: vai limpar as gavetas, revirar os armários. Começa pela coleção de sapatos. O vermelho, com o salto quebrado, separa. Que se vá também o creme, com a borda descolada. E a sandália prateada, do baile de formatura.
Uma caixa mais, e Juliana chega às fotos. Chapéu de rodeio e a pose, risonha, em preto e branco, sobre o cavalinho de pau do parque. O escândalo nos braços do Papai Noel de vitrine. É uma imagem, pouco à frente, que a tomará como uma espiral a varrer folhas de agosto. Juliana faz menção de guardá-la. No caminho, desiste. Estão lá o pai, a mãe, Ju e a irmã. O cachorro Segredo completa o quadro. Ao fundo, o mar. Era a primeira viagem ao litoral. Um dos pés está ligeiramente adernado. O outro ao ar, como em desequilíbrio.
Era exatamente assim que Juliana sentia o mundo agora. E a impressão que guardou do mar no primeiro contato a visitava ali. A lembrança das mãos espalmadas sobre as sobrancelhas de menina. O giro lento do pescoço duma ponta à outra. E a síntese, segura, descrita à mãe: 'O mar é grande. Mas não é assim tão grande como eles falam'. Sem dar tempo à resposta, lançou às águas a bóia moldada em câmara de pneu, com remendos à borda. Só compreenderia, anos mais tarde, o significado do riso de canto de boca que a mãe lhe devolvera.
Era nesse mesmo tom que reagiria, mais à frente, ao universo povoado de duendes, fadas e bruxas que o filho lhe revelava às portas das noites de sono. Tudo em tom de segredo. Juliana, então, inclina a foto, já sem cores vivas, diante do rosto. A cabeça em rotação, acompanhando o movimento. Feito um barco. Corre sobre ela a ponta da unha esmaltada. Como se tocasse a areia. É ao mar que voltará, define. Seguirá na manhãzinha da terça. Sem dizer ao marido, dar pistas ao filho ou ciência ao trabalho. Revelara tanto, até então, que se permitia seguir assim. Sem palavra que fosse.
Estava exausta e, por escolha, só. Não revelaria, nem ao marido, nem ao filho, a sentença que ouvira naquela tarde. O sinto muito definitivo do médico. A pilha de exames a que se submetera. Não era nada, não era nada, limitou-se a descrever. Ar de quem se manteria, com naturalidade, iluminando a casa. Decidira, afinal, poupá-los. Aprontou uma malinha, em silêncio, na madrugada. A escova de dentes ficaria para trás. Separou fotos, muitas fotos. Uma sandália baixa. Uma caneta. O cigarro esqueceria sobre a mesa. Batons, batons, suas loções finas, não faziam mais sentido. Perfumes, menos ainda.
O lenço em vermelho forte, da Espanha, a acompanharia. Foi com ele ao pescoço que Juliana tomou a estrada em busca do litoral. Vidros abertos. E como era a ela mesma que mais precisava ouvir, abriria mão da música pelo trajeto afora. As fotos ela deixou sobre o outro banco dianteiro. Foi lançando, uma a uma, às margens. Como se desconstruísse o que levara uma vida a alinhavar. Havia gente cujo nome se transformara num mistério instigante. Outros, que amava com uma solidez inabalável. Aportou, então, no reencontro com o mar, segurando uma única foto.
A imagem era a que a desafiara, horas atrás. Os pés em ligeiro desequilíbrio. Mais que isso: a impressão sobre a vastidão das águas, que comparava ao sentimento que lhe assombrava naquele instante. A saudade, resumia, era feito um oceano. Como cabia, sem transbordar, num território tão pequenino quanto o coração? Por certo, imitava o mar. Aos olhos de menina, não lhe parecia aquele horizonte gigantesco de que falavam os livros. Nenhum mencionava a solidão, porém, para além do olhar. Ju caminhou ao estertor das marés, deixou que as ondas lhe tocassem os pés.
E sentiu que estava pronta para a volta. Antes, transformou a foto num cartão-postal. Subiu a serra em paciência de quem esperava que recebessem, primeiro, sua mensagem. Lá escreveu, no costado: 'Há um oceano de saudade em mim'. Foi parando a cada cidadezinha. Face ao vento. Agora, com música. E nenhuma foto mais para lançar à estrada. Era ao destino que entregava suas mãos.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
Desapegar-se das imagens que revelam nossos pequenos segredos e escancaram nossos amores não é tarefa
ResponderExcluirfácil pois elas contam um pouco da nossa história.
Juliana é corajosa.
Belo texto Eduardo.
Abraços
O diagnóstico de doença incurável, a viagem para a morte, a retrospectiva da vida pelas fotos, o descarte dessa mesma vida através da janela, o deixar para tras o que não tinha mais significado. Emociona de forma vergonhosa. Eduardo, devia ser proibido fazer isso com quem lê você. Beijos e saudade de não ter te visto aqui na semana passada.
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