segunda-feira, 5 de outubro de 2009




Plena satisfação

* Por Daniel Santos

Não há como caber dentro de um quarto-e-sala. Tivesse mulher e filhos, faltaria espaço. Sozinho, e tamanha a solidão, se sentia igualmente emparedado. Assim, através da janela, escapuliu à noite já em vigor.

O céu rebrilhava de fausto sobre o fundo de veludo que acomoda mistérios. Tudo atraía para as incógnitas, embora logo abaixo a cidade, imperativa de tanta realidade, consagrasse o óbvio – seu cotidiano.

Acendeu o cigarro, apesar da tosse renitente, e viu a fumaça evolar numa espiral de sugestões: que a seguisse. Sua língua ganhou, então, elasticidade, atraída pelo cintilar de estrelas que atiçavam sua fome.

Agora, a solidão mais arriava. Sentiu a esmagá-lo a pressão de uma metamorfose e, quase agachado, coaxou! Surpreso, coaxou de novo, enquanto as pernas ganhavam poder de impulso. Mas não, não saltou.

Deu um piparote na guimba e cuspiu sua perplexidade. Depois, a janta. Estendeu a língua, pegou uma estrela e comeu. Estendeu a língua pegou outra estrela e comeu, e outra e outra ... até a plena satisfação.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.


7 comentários:

  1. O emparedado não virou príncipe, mas comeu estrelas. Um belíssima metáfora,Daniel. E enquanto a minha carruagem, diariamente vira abóbora à meia noite, quando desligo o micro e me acalmo ao leito,voltando a minha árdua realidade, vejo-o aqui crescer e atingir perfeições de mestre. Perdoa-me a tietagem explícita, mas nessa você arrebentou os limites, se sideralizou. Bom demais!

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  2. Daniel, um conto de fadas ás avessas ?
    Um pseudo-príncipe que virou sapo. Ou seriam todos os sapos, príncipes disfarçados ?
    Adorei a escolha das palavras.
    Bom. Muito bom.

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  3. Só um grande escritor para encontrar tanta poesia em uma cena como esta:
    "Estendeu a língua, pegou uma estrela e comeu. Estendeu a língua pegou outra estrela e comeu, e outra e outra ..."
    A cada novo texto você se supera, Daniel, e nos faz amar as cinzentas segundas-feiras.
    Obrigada por inundar meu mundo de poesia.
    Beijo
    Ris

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  4. Nosso amigo girino deve estar plenamente satisfeito com um texto desses. Maravilha, Daniel. O manejo excepcional da língua não é exclusividade do sapo!

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  5. Qualquer dia, fico besta de vez, mas a culpa é de vcs que me cumulam de qualificações as mais generosas. Uma estrela para cada um e obrigado.

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  6. Lindo comentário de Marcelo e mais linda ainda a réplica do autor. Parabéns a ambos gente!

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  7. Ora, Mara, deixe de mimos que assim me estraga ... hehehe ...

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