segunda-feira, 5 de outubro de 2009




Para ser aceito

* Por Mara Narciso

Todos sabem que quem é magro, jovem, bonito e feliz é totalmente aceito em qualquer lugar. Assim alguma ordem invisível nos diz que é preciso ser perfeito para ser aceito. Muitos não concordam com essa ditadura e brigam contra ela. O que dizer daqueles que fogem totalmente ao padrão?

Quando assisti ao nosso telejornal da faculdade de Jornalismo com a tradução simultânea para a Língua Brasileira de Sinais – Libras –, fiquei pensando no tamanho do universo dos surdos. Quantos seriam? Onde estavam? Parece que não existem de tão pouco que chamam a atenção. Então, algum tempo depois vi por várias vezes pessoas se comunicando silenciosamente. Gesticulam e se fazem entender pelos sinais. Não os vemos porque não fazem barulho. Caso assim o fizessem batendo latas e pratos seriam vistos e ouvidos, pois são muitos.

Tive um vizinho que não ouvia e nem falava. Manifestou o desejo de me namorar. Seu nome era Ricardo. Lembro-me que era bonito, miúdo, magro, de pele clara, olhos esverdeados, cabelos loiros e grandes, caindo abaixo do pescoço, e tinha um olhar muito expressivo. Ele não usava a Libras, que aprendeu no Rio de Janeiro, por que ninguém daqui de Montes Claros sabia falar com ele. Então usava os dedos das mãos para descrever círculos, quadrados e outras imagens no ar e nas paredes, esboçando letras de forma, e assim era possível entendê-lo.

Uma amiga da minha mãe teve um filho que não ouvia. Uma tia suspeitou do problema e disse que um dia, notando que todas as crianças brincavam ruidosamente, e o sobrinho estava quieto e alheio, armou-se com duas tampas de panelas e as bateu uma contra a outra, feito pratos de uma banda de música por trás e bem próximo dos ouvidos da criança. O menino nem se mexeu. Estava dado o diagnóstico. A mãe, no entanto, não permitiu que a criança aprendesse a Libras, pois achava que falar nessa língua era uma forma de segregação, já que poucos o entenderiam. Optou por alfabetizá-lo em casa, e daí emitia sons e gesticulava para se comunicar. Ela sempre compreendeu o que o filho dizia. Os de fora, não muito.

Uma outra mãe ficou irada quando levou o filho de quase três anos ao pediatra. A queixa: “meu filho não fala uma palavra, doutor. Será que ele não escuta?” O médico, um poço de inabilidade de lidar com a cliente, respondeu assim: “ Caso ele chegue aos três anos e continue sem conversar é porque é surdo”. A mãe, que queria um conforto e não o obteve, pegou o filho pela mão e lá não mais voltou.

Quando eu militava no PT e depois quando participei de um evento de Inclusão Escolar, convivi com dois rapazes que eram irmãos e ambos com deficiência visual. Tinham graduação superior, e o que me chamava a atenção neles era a habilidade para achar os lugares, participar de tudo e principalmente andar de forma rápida, aparentando segurança até mesmo nos ambientes mais improváveis. Um deles era formado em pedagogia.

Até o ano passado, tínhamos na Faculdade de Jornalismo uma colega de uma outra turma que andava por todo o prédio com desinibição, sem guia e sem bengala, e não enxergava. Durante a Semana da Comunicação as anotações eram feitas em Braile. Foi a única vez que presenciei esse fato. Antes tinha visto pessoas lendo em Braile, inclusive em bibliotecas, ou lendo marcações em pontos estratégicos de cidades turísticas, mas escrevendo foi a única vez. Ela usava uma espécie de cartela, semelhante àquela usada nos primórdios da informática para marcar a Loteria Esportiva, e com uma peça feito um furador de alfinete escrevia o que o professor dizia na palestra. Fazia uma irregularidade em alto-relevo no papel e em seguida passava a polpa digital e reconhecia os seis pontos que marcam cada caracter. Com agilidade ela anotava tudo.

Muitos portadores de diabetes, inclusive os mais jovens, podem perder a visão devido ao mau controle da doença. Conheci pessoas que escolheram viver de forma irresponsável, negando a existência do problema, exatamente porque entenderam que por terem diabetes viveriam pouco, então, equivocadamente abandonaram seus tratamentos, ou o fizeram de forma precária. O resultado foi a destruição das suas retinas com perda da visão. Outras doenças oculares como ceratocônio, glaucoma e retinose pigmentar evoluem para perdas visuais. É preciso estar atentos.

Para não soar de forma professoral, ou ainda como lição ou ensinamento, pois quando temos um problema real, melhor que não o desprezem, vejo assim: evite discriminar pessoas por elas não serem ou não estarem perfeitas fisicamente. Nunca sabemos por quais caminhos andou até aquele momento. A nossa intolerância é um mau comportamento que estigmatiza. Embora a convivência social muitas vezes careça de harmonia, o melhor para todos é a busca da paz. Não apenas um ganha, mas todos com ela ganharão.

* Médica, acadêmica do sétimo período de Jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”


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5 comentários:

  1. Perfeito, Mara. A compreensão e a tolerância são virtudes cada vez mais escassas, quase raras, neste mundo excludente. E, no entanto, de uma forma ou de outra, ninguém se encaixa à perfeição no molde consagrado.

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  2. Mara,
    A deficiência que conheço é a de caráter. E a pior doença, a da alma.
    Quando o ser humano vai enxergar que atingir " padrões", " perfeições", " estar na moda", só leva cada vez mais ao consumo da tão famosa " tarja preta" ?
    O que seria perfeição ?
    Hellen Killer é sinônimo de " superação" e " garra". Beethoven, outro.
    Quem pode dizer que não eram " perfeitos" ??
    Espíritos " brilhantes", deixaram exemplos de superação na terra....

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  3. Daniel e Celamar, é preciso protestar contra imposições que suspeitamos mas deconhecemos a autoria, em vista de muita coisa não estar escrita. Acho que nós que escrevemos somos também marginalizados, justamente por pensarmos e tentarmos colocar mais gente para pensar.Ao mesmo tempo somos intolerantes conosco mesmos. Obrigada pelos comentários.

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  4. Beleza de texto, Mara. Um verdadeiro libelo contra o descuido, a intolerância e a irresponsabilidade diante de assunto tão sério. Parabéns.

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  5. A imperfeição física é um tema pesado e que evitamos tratar. Por dentro o preconceito nos corrói, enquanto na superficie fingimos não os ter. Obrigada Marcelo!

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