Soprou um sonho, pôs velas ao vento
* Por Eduardo Murta
Nem dia, nem noite. Era nos fins de tarde que Léo manejava os remos destino abaixo. À convicção de que, na fina migração do claro para o escuro, as pessoas estariam mais dispostas a ouvi-lo. Julgava que nesta passagem transitória, pura intuição, os corações se amanteigavam. Eis por que preferia começar com os poemas. Os mais açucarados. E descia, tangenciando as curvas do Velho Chico. Arremetia as frases e ia dando com absoluta desatenção aqui, desinteresse mais adiante, um dar de ombros à frente. Sequer os cães se alinhavam ainda que para brandir-lhe os dentes.
Não desistiu, visitando-lhe a lembrança do pai, que o embalara com histórias desde que houvera descoberto as palavras. No manejo ao comando do gaiola a vapor, cruzando as corredeiras, a voz paterna ia descrevendo cenários e revelando o que incensaria seu imaginário vida afora. Tudo temperado ao molejo, aos sons e ao cheiro das águas. Era àquilo que se inclinava incondicionalmente. E haveria de reparti-lo. A que não retrocedesse, inovou. Começou acoplando estandartes ao barquinho. Cores vivas. Passou então a ser uma bandeira tremulando na imensidão do rio. Com os resultados tímidos, buscou o extremo. Incorporou um megafone amarelo e estridente à missão.
Vieram ovos – não em brindes, mas arremessados –, tomates e sobras de esterco por todas as extremidades do corpo. Foi paciente. Adubou horta, prosseguiu, e bafejaram-lhe os primeiros efeitos. Parado na rua por Dona Josefina. Plena feira de domingo, entre as barracas de peixe. Pedia resumo sobre aquelas expressões que classificou como ensaboadas, presentes num dos poemas de Manuel Bandeira. Melhor foi Venâncio, o mais novo de Quitéria e Seu Totó, sugerindo um desfecho picante para a historieta de Monteiro Lobato.
Deu viva, então, a Mestre Bidoga, amante das ortodoxias contábeis, que se prontificara a organizar-lhe a uma futura biblioteca. Uauuu... Disse que sim, claro, mas sob uma condição: que baixasse com ele à embarcação, como fiel escudeiro. Domaria as páginas, a que o vento não embaralhasse parágrafos, sentimentos e sentidos. E ainda empunharia o guarda-chuva essencial, desdobrando o sol inclemente daquele Norte.
Ficou perfeito para que Léo emprestasse ar teatralizado aos trechos mais agudos: o momento do beijo, a partida, o reencontro, a notícia da morte, a traição, as descobertas singelas. Se realizou, tanto vendo gente chorar quanto se remoer de ódio e indignação diante do destino de protagonistas ou vilões. E nem mais e mais lhe surpreendiam os que invadiam as margens clamando a que dourasse a sorte de figuras como Julieta, Romeu, ou a dos retirantes da seca.
Daí ter-lhe marejado o coração a forma como a comunidade de Modesto Longe o recebeu naquela tarde de segundo capítulo. Mulheres, pescadores, meninos e meninas com os latões em água farta assentados à cabeça. Antes que iniciasse a leitura, chegou o recado. Só lhe ouviriam de novo se remetesse ao tal Graciliano tudo o que haviam coletado. Graciliano? Que Graciliano? O próprio, o Ramos, o tal que ele apresentara como responsável por tudo em “Vidas Secas”, em que calor e sede se punham como combinação mortal.
Riu, num primeiro momento. Pensou em explicar que, uma vez escritos, os livros alinhavavam começo, meio e fim. Entabulavam sentenças irremediáveis. Mas se corrigiu a tempo. Viu que assim roubaria aos outros a chance de reinvenção das histórias. O direito de um segundo olhar reparador. Tocado, assentiu. Desde então, fez e alimentou planos com aqueles a quem chamou de novos artesãos. E, domingo de dezembro, correntezas inda barrentas do Velho Chico, são eles deslizando rio abaixo.Os estandartes multicoloridos como flâmulas tremulando. Navegando, mais que por um sentido, um sentimento que havia transbordado as margens tangíveis do papel. Bebiam daquela magia de, mal conhecendo as letras, terem se transformado em delicados escrevinhadores de sonhos. Aonde quer que as águas os levassem.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
* Por Eduardo Murta
Nem dia, nem noite. Era nos fins de tarde que Léo manejava os remos destino abaixo. À convicção de que, na fina migração do claro para o escuro, as pessoas estariam mais dispostas a ouvi-lo. Julgava que nesta passagem transitória, pura intuição, os corações se amanteigavam. Eis por que preferia começar com os poemas. Os mais açucarados. E descia, tangenciando as curvas do Velho Chico. Arremetia as frases e ia dando com absoluta desatenção aqui, desinteresse mais adiante, um dar de ombros à frente. Sequer os cães se alinhavam ainda que para brandir-lhe os dentes.
Não desistiu, visitando-lhe a lembrança do pai, que o embalara com histórias desde que houvera descoberto as palavras. No manejo ao comando do gaiola a vapor, cruzando as corredeiras, a voz paterna ia descrevendo cenários e revelando o que incensaria seu imaginário vida afora. Tudo temperado ao molejo, aos sons e ao cheiro das águas. Era àquilo que se inclinava incondicionalmente. E haveria de reparti-lo. A que não retrocedesse, inovou. Começou acoplando estandartes ao barquinho. Cores vivas. Passou então a ser uma bandeira tremulando na imensidão do rio. Com os resultados tímidos, buscou o extremo. Incorporou um megafone amarelo e estridente à missão.
Vieram ovos – não em brindes, mas arremessados –, tomates e sobras de esterco por todas as extremidades do corpo. Foi paciente. Adubou horta, prosseguiu, e bafejaram-lhe os primeiros efeitos. Parado na rua por Dona Josefina. Plena feira de domingo, entre as barracas de peixe. Pedia resumo sobre aquelas expressões que classificou como ensaboadas, presentes num dos poemas de Manuel Bandeira. Melhor foi Venâncio, o mais novo de Quitéria e Seu Totó, sugerindo um desfecho picante para a historieta de Monteiro Lobato.
Deu viva, então, a Mestre Bidoga, amante das ortodoxias contábeis, que se prontificara a organizar-lhe a uma futura biblioteca. Uauuu... Disse que sim, claro, mas sob uma condição: que baixasse com ele à embarcação, como fiel escudeiro. Domaria as páginas, a que o vento não embaralhasse parágrafos, sentimentos e sentidos. E ainda empunharia o guarda-chuva essencial, desdobrando o sol inclemente daquele Norte.
Ficou perfeito para que Léo emprestasse ar teatralizado aos trechos mais agudos: o momento do beijo, a partida, o reencontro, a notícia da morte, a traição, as descobertas singelas. Se realizou, tanto vendo gente chorar quanto se remoer de ódio e indignação diante do destino de protagonistas ou vilões. E nem mais e mais lhe surpreendiam os que invadiam as margens clamando a que dourasse a sorte de figuras como Julieta, Romeu, ou a dos retirantes da seca.
Daí ter-lhe marejado o coração a forma como a comunidade de Modesto Longe o recebeu naquela tarde de segundo capítulo. Mulheres, pescadores, meninos e meninas com os latões em água farta assentados à cabeça. Antes que iniciasse a leitura, chegou o recado. Só lhe ouviriam de novo se remetesse ao tal Graciliano tudo o que haviam coletado. Graciliano? Que Graciliano? O próprio, o Ramos, o tal que ele apresentara como responsável por tudo em “Vidas Secas”, em que calor e sede se punham como combinação mortal.
Riu, num primeiro momento. Pensou em explicar que, uma vez escritos, os livros alinhavavam começo, meio e fim. Entabulavam sentenças irremediáveis. Mas se corrigiu a tempo. Viu que assim roubaria aos outros a chance de reinvenção das histórias. O direito de um segundo olhar reparador. Tocado, assentiu. Desde então, fez e alimentou planos com aqueles a quem chamou de novos artesãos. E, domingo de dezembro, correntezas inda barrentas do Velho Chico, são eles deslizando rio abaixo.Os estandartes multicoloridos como flâmulas tremulando. Navegando, mais que por um sentido, um sentimento que havia transbordado as margens tangíveis do papel. Bebiam daquela magia de, mal conhecendo as letras, terem se transformado em delicados escrevinhadores de sonhos. Aonde quer que as águas os levassem.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
A poesia começa já no título da crônica e escorre por entre as linhas da crônica a seguir. Ali, de povoado em povoado, a literatura infiltra-se, mansa e querida. Parabéns, Murta!
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