Fascínio que se renova
Estou
cada vez mais fascinado pela literatura portuguesa. Não me refiro,
aqui, aos clássicos, como Eça de Queiroz, Alexandre Herculano, Luiz
Vaz de Camões, Júlio Diniz, Camilo Castelo Branco, José Maria Du
Bocage, Fernando Pessoa e tantos e tantos outros. Esses leio, releio,
estudo, analiso e comento vezes sem conta, com o mesmo entusiasmo e
empolgação. São as raízes da literatura que amo e que busco
fazer. Os escritores lusitanos que atualmente me embevecem são
outros, são os contemporâneos. Seus livros estão expostos nas
melhores livrarias de Lisboa, do Porto, de Coimbra e das demais
cidades de Portugal. São atuais, atualíssimos, posto que alguns
deles já tenham morrido.
Acabo
de ler “O sal da língua”, do poeta lírico português Eugênio
de Andrade (falecido em 13 de junho de 2005) – escritor sobre o
qual tive a oportunidade de tratar recentemente – e ainda estou sem
fôlego, abobalhado diante de tanta beleza, tanta maestria no manejo
das palavras, tanta empatia que seus versos despertam, enfim, tanta
sensibilidade e genialidade. Não sei se esse livro chegou a ser
lançado no Brasil (desconfio que não). A edição que tenho em mãos
é de uma editora portuguesa. Sua leitura suscita-me “n”
reflexões, sobre a arte, sobre o homem, sobre a vida e sobre o amor,
entre tantas outras.
Certamente
ainda citarei muito este poeta, ganhador de um Prêmio Camões de
Literatura (o de 2001), um dos nomes mais ilustres da literatura
portuguesa contemporânea. Lembro que Eugênio de Andrade (cujo nome
de batismo é José Fontinhas Rato), publicou, também, várias obras
em prosa e foi ainda exímio e requisitado tradutor. Mas o que me
fascina, encanta, embevece e entusiasma é a sua poesia. Ainda mais
depois da leitura de “O sal da língua”.
O
objetivo destas reflexões, é bom que se diga, não é o de fazer
crítica literária e muito menos o de resenhar esse livro ou
qualquer outro. Poderia fazê-lo, mas este não é espaço apropriado
para este fim. A finalidade é a de manifestar, publicamente, o
entusiasmo, a apreciação, o encantamento que seus versos mágicos e
musicais me causaram e me causam quando os releio.
Filtrei,
em textos esparsos, algumas das opiniões de Eugênio de Andrade,
quer sobre o homem, quer sobre a vida e quer, sobretudo, sobre a arte
poética. Noto nelas extrema coerência. Ou seja, a de quem viveu
tudo o que pregou. Ele escreveu, por exemplo: “O mal é a ausência
do homem no homem”. E não é?! Outra observação, na mesma linha,
é esta: “É possível que só as árvores tenham raízes, mas o
poeta sempre se alimentou de utopias. Deixe-me pois pensar que o
homem ainda tem possibilidades de se tornar humano”. Tomara que
tenha.
Sobre
sua arte, Eugênio de Andrade escreveu: “É possível que a poesia
seja ficção, mas prefiro pensá-la como Goethe: inseparável da
verdade”. Esta também é a minha preferência e a maneira de
encarar a arte poética. Nada melhor, todavia, para ilustrar o estilo
e a maneira de escrever de um poeta do que reproduzir sua poesia. É
o que faço, pois, brindando a todos vocês com este poema,
intitulado “Rosa do mundo”:
Rosa
do Mundo
Rosa.
Rosa do mundo.
Queimada
Suja
de tanta palavra.
Primeiro orvalho sobre o rosto.
que
foi pétala
a
pétala lenço de soluços.
Obscena rosa. Repartida
Amada.
Boca
ferida, sopro de ninguém.
Quase
nada.
Gostaram?
Eu gostei, e muito. Não resisto, todavia, à tentação e reproduzo
outro dos poemas de Eugênio de Andrade, este um tantinho mais
extenso, intitulado “Algumas reflexões sobre a mulher”:
Algumas
Reflexões Sobre a Mulher
Elas são as mães:
rompem do inferno, furam a
treva,
arrastando
os seus mantos na poeira
das estrelas.
Animais sonâmbulos,
dormem nos rios, na raiz do
pão.
Na vulva sombria
é onde fazem o lume:
ali têm casa.
Em segredo, escondem
o latir lancinante dos seus
cães.
Nos olhos, o relâmpago
negro do frio.
Longamente bebem
o silencio
nas próprias mãos.
O olhar
desafia as aves:
o seu voo é mais fundo.
Sobre si se debruçam
a escutar
os passos do crepúsculo.
Despem-se ao espelho
para entrarem
nas águas da sombra.
É quando dançam que todos os caminhos
levam ao mar.
São elas que fabricam o mel,
o aroma do luar,
o branco da rosa.
Quando o galo canta
Desprendem-se
para serem orvalho.
Entre os textos de Eugênio de Andrade, encontrei estas confidências, que considero surpreendentes, mas pitorescas: “Eu nem sequer gosto de escrever. Acontece-me às vezes estar tão desesperado que me refugio no papel como quem se esconde para chorar. E o mais estranho é arrancar da minha angústia palavras de profunda reconciliação com a vida”. Imaginem, pois, se Eugênio de Andrade gostasse de escrever!
Boa leitura!
O Editor.
Uma festa para os olhos e a alma: vocês dois.
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