sábado, 28 de abril de 2018

Sujeito Zero (19) - Sérgio Vilas Boas


Sujeito Zero (19)


* Por Sergio Vilas Boas


Acabaram de mandar Fernando Collor de Melo para o espaço. Ah, que coisa, Seu Edmundo ainda não podia (ou não conseguia?) possuir um telefone em casa. Ele bate novamente no portão de Beatriz com os dedos grudados. Faz mais força com os bíceps do que com a mão, tenta amortecer a pancada e o incômodo que a batida pode causar em Beatriz, principalmente depois que Nádia corre para atender e grita aquele “maaaaaaãe” infantil maçante, idêntico ao de Bruna com os mesmos sete anos!

Beatriz chega ansiosa, enxuga a mão no avental jeans costurado à mão por ela mesma. Solícita, mantém sua angelical expressão singular.

Beatriz é atarracada e morena. Os olhos arregalam quando fala e a testa franze enquanto escuta. A voz rouca e áspera não tem nada de malícia ou gravidade. Ao contrário, combina com seu jeito mole de articular as palavras. Beatriz aparenta mais jovem quando os cabelos secos, negros e longos são presos em rabo longo de cavalo. Parece índia.
- Estou precisando fazer uma ligação pro meu trabalho. (Diz Seu Edmundo.) O telefone público do Bar do Joaquim não está funcionando.

Acende um cigarro. Pode não ajudar nada, mas preci­sa de um agora. Acaricia os cabelos despenteados de Nádia, que sorri afetiva antes de recobrar o olhar frouxo e sem pontaria. Seu Edmundo traga fundo seu Derby.

Beatriz sutilmente reclama do preço da conta de telefone. Seu Edmundo se ressente.
- Não, não, o que é isso, o senhor pode entrar e ligar pro seu trabalho. Foi o modo de dizer.
Seu Edmundo releva.
- Não repara a bagunça, por favor, Seu Edmundo. Para variar, estamos em obras de novo. A poeira é invencível. Nádia acompanha o senhor, mas tira o dedo do nariz, menina!

Beatriz, com seu passo de pingüim, curto e ágil, retorna à cozinha, passando por um corredor oposto ao que conduz à porta da sala. Os chinelos de couro aos poucos fogem do raio de audição de Seu Edmundo e Nádia.

Ele deixa a menina mais à vontade e derretida, com rosto de quem espera um chocolate ou, no mínimo, uma adulação.

Parecia haver na casa de Beatriz uma fúria construtiva: uma parte da casa está obstruída por escoras de madeira sustentando o encon­tro de duas lajes. O chão respingado com nata cinza de cimento escorrida das frestas da armação que formata a viga ainda úmida. Algumas paredes sem reboco estão mo­fadas. Um pouco da água do último temporal continua empoçada perto do vão de uma futura janela. Há móveis amontoados, material de construção estocado; montes de tacos de peroba esperando marteladas e pregos em L; cheiro de cimento misturado com de areia e serragem úmidos. Não há muito o que organizar exceto proteger os móveis com plásticos e lonas.

Nádia passa o telefone para Seu Edmundo. Ele pisca de novo para a menina. Ela adora essas intimidades sutis. Pedro, irmão de três anos de Nádia, dorme como um bebê. Mesmo não muito perto dele, Seu Edmundo nota uma pequena fenda nos olhinhos de Pedro – pálpebras semi-abertas como ostras.

Nádia acaricia o gato cinzento que, antes da chegada de Seu Edmundo, cochilava sobre o móvel da máquina de costura de Beatriz. O gato, este irresponsável guardião das duas crianças, espreguiça. Deleita-se com os carinhos de Nádia.

Miguel atende. Seu Edmundo tenta ser o mais objetivo possível. Mas desliga o telefone no momento em que Beatriz reaparece. Ele fugia de flagrantes como o diabo da cruz. Tudo tinha de ser sem testemunhas adultas, às escuras, silenciosamente. Esvaziado o cenário, aí sim, ele comunica a Miguel sua decisão de comparecer à consulta médica marcada com antecedência.
- Uma novidade, Dmundão: acabam de anunciar aqui que fomos incorporados por um poderoso banco holandês. Vamos virar laranjas, Dmundão, como a Laranja Mecânica holandesa de 1974. Teremos de falar holandês agora, é?

A ligação caiu no momento em que Miguel disparava uma gargalhada. Era muito mais informação do que Seu Edmundo gostaria de ter recebido. Prefere reter o que lhe resta: atrasar-se. Nessas horas, sua teimosia se manifesta em sutilezas, e criam-se os obstáculos. Ao sair da casa de Beatriz, já está suficientemente atrasado para a tal consulta. Como um sujeito tão disciplinado para o trabalho podia ser tão desleixado consigo? Desce a ladeirosa Rua C, o mundo de Edmundo que Alma respeita à distância.
***

Quanto mais papel consumido, mais árvores cortadas. Seu Edmundo chega atrasado de propósito à clínica onde devia ter dito ao médico que às vezes tinha palpitações, faltas de ar e lapsos. Poderia ter extirpado o câncer de pulmão a tempo e viver um pouco mais. Mas, por sorte ou azar, o médico estava mais atrasado do que ele.

A clínica fica numa casa antiga. Uma edificação vulgar – uma dose de funcionalidade, duas de kitsch. O interior fora restaurado de um modo con­trastante. As paredes foscas abrigam algumas obras difíceis de interpretar. Pinturas de cabeça para baixo, gravuras de cores berrantes e sem forma, figurações, flores artificiais sem caráter, dentro das quais dormiam durante o dia insetos minúsculos.

Atrás da mesa da recepcionista há uma colagem enorme na parede. É uma paisagem campestre, com árvores bem verdes, ipês, flores brancas como catapora sobre a grama verde e uma queda d’água exalando um frescor forjado. O efeito obtido na fotografia remete a imagem da cachoeira a um longo véu.

A beleza maior está na garça se equili­brando em uma perna só, a outra encolhida até a dobra. Vista assim, de perfil, a ave parece uma vareta sustentando um travesseiro de plumas.

A recepcionista tenta disfarçar que está ocupada. Na verdade, repete os mes­mos gestos e movimentos. O olhar dela é de tédio, isto sim. Olhos parcimoniosos, miú­dos como duas contas. Os cabelos avermelhados pendem sobre a testa. Armam um delicado círculo em torno das orelhas. O tampo de vidro da mesa a obrigava a preocupar-se com a saia curta.

Consulta a agenda. Faz uma cara de menina travessa e volta a si.
- Duas pessoas chegaram antes do senhor.

Seu Edmundo demonstra contrariedade porque contentamento, àquela altura, ia soar falso demais. Não sabe por que a moça ri dele de modo tão zombeteiro, como se algo de muito esquisito tivesse sido impresso naquele rosto diante dela.
Ela enrubesce, resgata a compenetração e... Rã-rã. E o trabalho.
- É a primeira vez que o senhor consulta aqui?
- Primeira e última.

Ele era duro de vez em quando; até porque, como odiava se ausentar do trabalho, queria ter ouvido da moça que atrasos são irreparáveis. Assim poderia partir, mandar para aquele lugar a consulta e ir escalar sua montanha de cheques sem culpas.

Tem outra coisa que chama a atenção na recepcionista: o modo como ela segura a caneta entre o indicador e o anular. Os dois se juntam ao pole­gar para guiar a ponta da esferográfica sobre o papel. A caneta fica tão vertical que a mão dela parece a haste de um pantógrafo. Se fosse mais observador, ele teria se espantado com o quanto aquele jeito se assemelha ao seu.

Seu Edmundo tira os óculos do bolso e os coloca para folhear uma revista velha que apanha na cesta de palha trançada. Sente a perna direita saltitar. Passa deserto as páginas. Plana o olhar por cima dos óculos, que estão a meio-nariz. Outros clientes estão olhando para o chão, exceto alguém ao lado de Seu Edmundo, uma senhora fumando debaixo de um “Não Fume”.

E havia outra placa mais à esquerda: “Fumar Faz Mal”. E uma mais distante: “Fumar Prolonga a Vida”. Abaixo dela, o desenho de um esqueleto enfumaçando a porta do próprio túmulo. Se era mesmo proibido fumar ali, por que diabos havia tantos cinzeiros?

Teve uma segunda impressão ruim do lugar, da casa restaurada e da campainha estridente do telefone. Na avenida movimentada, lá fora, o ronco dos motores eram como bombas a abalar os alicerces. Para ele, devia ser uma expectativa angustiante. A vontade predominante nele era sair pela tangente.

Seu Edmundo generalizou que os médicos são pessoas egoístas, metidas, arrogantes, desumanas. Talvez um encontro dele com médicos simbolizasse fragilidade. Ele é de um tempo em que homens frágeis não são homens, mesmo ele, que nunca ergueu a voz. Levantou-se e foi até a porta. Andou de um lado para outro aparentando uma tranqüilidade descabida.

Miguel certa vez lhe disse que bananas são ricas em potássio, que potássio auxilia a circulação do sangue e, conseqüentemente, ajuda a respirar. Interessante como informações amparadas por autoridades constituídas, repassadas por pessoas neutras, não familiares, recebiam algum crédito de Seu Edmundo.

Ele era capaz de, por exemplo, comer bananas três ou quatro vezes ao dia durante uma semana. Se as bananas não provocassem nenhuma alteração no organismo (contra ou a favor) em uma semana, o que era cientificamente provável, abandonava-as.

Agia assim também com antibióticos em caso de amidalite, por exemplo. Se os remédios recomendados pelo farmacêutico Carlos Delfim não fizessem efeito em poucas horas, voltava à Farmácia São Carlos, no Jardim Nova York, a fim de trocá-los por outros. Ler bulas? Jamais. Nem bulas, nem catálogos telefônicos, nem rótulos, nem jornais, nem seus próprios exames laboratoriais.

Mas possui um mínimo de senso de resultado, como os novos velhos ingleses. Abre um pouco a greta da persiana, usando dois dedos, como quem separa as pálpebras para examinar a íris. Nuvens vão se juntando rápidas e formando uma crosta de chumbo no céu, da cor da fumaça dos ônibus e caminhões. A quantidade de material poluente na atmosfera seria hoje menor do que naquele ano de 1980 se o transporte público corresse sobre trilhos. Mas nem isso, nem trilhos.

Seu Edmundo se manda. Desce a escadaria, ganha a calçada e, aliviado, volta a ser o mesmo homem livre. Leva consigo um arrepio na espinha, como quem acaba de se desviar de um balaço. Deve ter pensado “muitos daqueles bobos sentados lá na clínica gostariam de fazer o que estou fazendo, fugir da consulta médica para ir jogar na Esportiva”.

Em algum dia de março de 1976, nove anos antes de uma diverticulite matar Tancredo Neves, Seu Edmundo entrou em uma casa lotérica para apostar na Loteria Esportiva, como fez toda semana, religiosamente, durante toda a sua vida metropolitana. O prêmio estava acumulado há dois sorteios. Marcou os palpites com uma esferográfica estropiada amarrada a um pedaço de barbante, técnica preventiva de retenção que iria inspirá-lo anos depois, na agência.

O caixa da casa lotérica perfurou manualmente o cartão pardo contendo os treze jogos da semana. Usava para tanto uma espécie de chave de fenda pontiaguda. Atravessava catorze quadradinhos, os treze palpites mais o extra (jogo-duplo) que a aposta mínima dava direito.

Todo domingo, durante o Fantástico, Seu Edmundo coloria os quadradinhos do volante de aposta em branco e sobrepunha a este o cartão pardo perfurado. Era o modo de conferir o total de pontos. Se o furinho estivesse escuro, ponto para ele. Se não, ponto para alguém mais.

Ria sozinho quando a animação grotesca de uma zebra movimentando a mandíbula dizia: “Êpa, olha eu aí. Deu zeeeeeebra!”.

Já havia feito doze pontos no mesmo ano em aposta de apenas um jogo-duplo. Ele refletiu um bom tempo, fato raro, sobre aquele Botafogo X Bangu. Considerou os noticiários, as possíveis escalações dos times, as baixas, o retrospecto, etc. Pimba: cravou Botafogo e empate. Deu Bangu: 2 a 0. Podia ter recebido o equivalente a 150 mil dólares de 1976.

Pela vidraça espelhada do balcão, ele próprio nota que abotoou a camisa às pressas ao sair de manhã rumo à consulta médica abortada. Uma casa sobrando em cima e um botão sobrando em baixo, perdido dentro da calça. Se era disso que a recepcionista da clínica debochava, ela tinha razão. Estava mesmo ridículo.

Atravessa sob sol forte a avenida movimentada por uma passarela de madeira e estrutura metálica. Suas últimas dores na nuca deviam ser reflexo de seu andar cabisbaixo. Nem olhando para o chão ele consegue caminhar em linha reta. Persistem as curvaturas.

Aos cinqüenta e poucos anos, quando foi à tal clínica, Seu Edmundo já demonstrava um apurado senso de irresponsabilidade. Tão desapegado que até a aliança do casamento com Inês, que ele usou até morrer, apesar de tudo, às vezes escorregava sozinha de seu dedo médio. Como ele desconhecia a misteriosa energia dos átomos, o fenômeno não o intrigou.


* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de Os Estrangeiros do Trem N (1997), Biografias & Biógrafos (2002) e Perfis (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.





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