domingo, 29 de abril de 2018

Sorriso da sociedade - Afrânio Peixoto


Sorriso da sociedade

* Por Afrânio Peixoto

Não tenho motivos para modificar minha definição de Literatura... A Literatura, ou as belas-artes, comparei-as ao sorriso da sociedade porque só nas épocas felizes a gente sorri. Nas de apreensão e tortura não há sorriso. O erro dos que, sem atentarem bem para ela, combateram e combatem minha definição, está em que eles supõem que eu tenha dito "sorriso do homem", quando o que eu escrevi foi "sorriso da sociedade". Está claro que não poderia nunca dizer que a Literatura é o sorriso do homem: primeiro porque este, para mim, não existe, não passa de simples elo de uma cadeia infinita; e, segundo, porque não ignoro que toda grande obra é feita, com a gestação, na dor. Mas só um ambiente social tranquilo e feliz permite o aparecimento de um livro notável. No tempo de Balzac, como havia abastança social, o autor de Père Goriot pôde dedicar-se a criar vida para gozo da sociedade. E só uma sociedade feliz aplaudiria Balzac. Das torturas de sua doença e de suas prisões na Sibéria, no cárcere e no hospital, Dostoiévski, através de seus livros, saía de si para a sociedade que o admirava.
Insisto que o equívoco está em imaginarem que eu tenha escrito que a Literatura é o sorriso do homem. Só um louco diria isso, pois, de acordo com semelhante conceito, apenas os soberanos, os ricos, os poderosos fariam letras. E é sabido que estes, em geral, nada produzem que se aproveite. Uma raiz atormentada, no fundo da terra, desabrocha nas flores de um vergel. A arte é o sorriso da sociedade. Pouco importa que o artista, pessoalmente, sofra. "De minhas penas fiz canções aladas", disse Henrique Heine, e a sociedade feliz, que o admirava, o aplaudiu. Agora, nem os ricos, os poderosos, os felizes conseguem realizar obra de arte, porque a sociedade sofredora não sorri... A Literatura não pode vir da indiferença ou da preocupação. A poesia já morreu, ao menos provisoriamente. Os romances são reportagens ou confissões. Quando muito, vidas romanceadas. Ensaios e mais ensaios... Em Bizâncio era gramática e teologia. Agora, no Brasil, política e ortografia. A volta da Literatura será prenúncio de bom tempo. Que venha!
(Apud Homero Senna, República das letras, pp. 101-102.)

* Médico, político, professor, crítico literário, ensaísta, romancista e historiador, membro da Academia Brasileira de Letras.


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