segunda-feira, 30 de abril de 2018

Amigos, amigos, bonecas à parte - Michelle Rachel


Amigos, amigos, bonecas à parte


* Por Michelle Rachel



Chegou o sabadão. O telefone toca repetidas vezes, mas Solange não quer atender. A cabeça dói, os olhos lacrimejam, um horror. De tanto trim-trim na cabeça e gritos da mãe, resolve atender o impaciente:
- Aaaalô – com a voz mais slow motion já ouvida na Terra.
- Sola, tô passando aí em quinze minutos! Tututututututututu – lá se foi a ligação.
- Mas...

Não houve tempo de terminar a frase. Ou melhor, de começá-la. Ah, pouco importava quem quer que fosse a pessoa do outro lado ou o que queria; o mau-humor estava reinando no quarto de Solange. De pijamas às cinco e vinte e cinco da tarde, que não tirara o dia inteiro, a moçoila ajeita as pantufas nos pés e coça o bumbum. A cabeça lateja e lateja.
- Hoje não tô pra ninguém, cama...

Alguém entra arrombando a porta.
- Sola, Solinha do meu coração...!
Anely enforca Solange na tentativa de dar-lhe um abraço. Solange fica sem ar e se joga de cabeça na poltroninha rosa próxima à penteadeira. As duas caem no carpete e quase se machucam. A cabeça de Solange, a essas horas, não apenas latejava, mas dóia de verdade. O “galo” cantou na testa da garota.
- Que diabos! – Solange balança os braços com raiva.
- Eita lelê...que bicho te mordeu, mulher?!
- Cala essa boca, Anely... já não me bastam meus problemas e você invade o meu quarto, me derruba e ainda fica gritando na minha orelha? Tenha dó!

Anely faz um bico e abaixa a cabeça, com dois galos enormes na testa.
- Me desculpa...é a euforia de sábado. É normal, você sabe...
- Ó, vou te desculpar desta vez, mas que minha porta nunca mais seja arrombada deste jeito. Tá louco, viu! Não sei porquê você é assim. Hoje estou com uma baita dor de cabeça, não vi a cor do sol ainda e você me apronta. Olha este galo aqui, tá vendo? Agora mesmo é que não saio na rua! Uiii !
- Snif, snif...sniiiiiiif...

De rabo-de-olho, Solange percebe que a amiga soluça baixinho, cabisbaixa. Senta na quina da cama, com as mãos entre os joelhos.
- Vim te buscar para ir ao cinema... hoje é a estréia do filme do Grad Fitt com a Anfelita Jallie. Ia pagar sua entrada porque hoje é o seu ani...
- Não termina, não termina!! Pelo amor de Deus, não terminaaaa...
- Mas hoje é o seu aniversário!
- Mandei não terminar! Ai, minha cabeça!
- Dia de aniversário deve ser um dia de festa, não dia de vestir este pijama horroroso aí.
- Veja lá como fala do meu pijama!
- E é dia de pentear os cabelos!
-Arrrgh...
- E também é dia de escovar os dentes como nunca! Que bafo, Jesus!
- Vem aqui, agora – Solange tenta agarrar a cabeça de Anely, que sai correndo.

As duas começam a dar voltas em torno da poltrona.
- Peraí. Peraíiii.
- Você me tira do sério!
- Vamos conversar.
- Depois que você levar o que merece!!

Anely pára. Solange bufa e seca a testa molhada de suor.
- Amiga, hoje é seu aniversário. Uma data linda, 18 anos de existência.
- Este é o problema!
- Já fiz 19 e estou super feliz!
- Mas eu estou triste hoje...18 anos! Pra quê?
- Vamos lá...quero te dar os parabéns. Me dá um abraço,vai.
- Não vou conseguir, você está muito gorda, Anely.
- Olha, não seja ingrata. São 19 anos de excesso, viu, excesso de gostosura.

As duas ficam de braços dados, tentando se abraçar sobre a barriguinha saliente de Anely.
O celular de Solange toca.
- Quem? A Anely? Tá aqui sim. Tá. Fala com ela.
- É ela. Se vamos? Vamos, sim. De pijaminha da She-ha? Quiá,quiá, pode ser.
- O que foi? Vamos aonde?
- Se troca pra gente sair.
- Não quero deixar este quarto hoje. 18 anos de ...
- Blá,blá,blá. Onde ficam suas blusinhas? Nesta porta?
- Nãaaaaao abr...!!

Bum! Cataploft!
- Quem mandou mexer aí??
- De onde você tirou tantos brinquedos??
- São meus...desde que nasci. Há 18 anos ganhava meu primeiro patinho de borracha.
- Meu Deus do céu! Estou perplexa com você! Patinho de borracha! Me parece que aqui há mais de quarenta bonecas...quase todas intactas...olha ali, uma que nem foi tirada da caixa!
- Sempre tive de tudo. Mais do que precisava. Mas o que quero mesmo, isto não tenho.

Anely pega no colo uma boneca-bebê.
- Mas o que você não tem, menina?
- Amigos sinceros.
- Eu sou sincera.
- Mas queria mais amigos, amigas...
- Não diga isso. Todo mundo te ama.
- Não acredito. Hoje ninguém lembrou do meu aniversário.
- Ah...então é isso? Você está chateada porque se sente abandonada, sei.
- Não é isso...
- Vem cá!
Anely puxa a amiga pelo braço, a pantufa fica presa ao tapete e lá se vão as duas para o chão novamente. Mesmo assim, com muita pressa, Solange é puxada pelos cotovelos até a porta.
- Espera! Vou tropeçar de novo! Meu celular está tocando!
- Deixa isso pra lá e vem aqui. Cuidado com os degraus.

A casa estava silenciosa. Tudo arrumadinho na sala e na varanda. Solange fica sem entender bolhufas.
- Siga-me – Anely fala com um ar muito sério, jamais visto por Solange.
- Estou assustada com seu jeito.
- Shhhhhh! Silêncio nesta hora – sussurra reclamando.

As duas caminhavam em direção à cozinha andando com a ponta dos pés.
- Acho que você enlouqueceu aos 19 anos, Anely...não estou entendendo nada! Raios!
- Gire esta maçaneta e abre a porta devagarinho,vai! Anda!

Solange fica ressabiada. Mas resolve abrir a porta da cozinha conforme Anely dissera.
- Surpresa!!!!!!!!
Amigos, muitos amigos. Mãe, pai, vizinhos fofoqueiros (não dava para perder a festa surpresa da Solange, né). Até cachorro e gato formavam um coro a cantar “Parabéns pra você” à moçoila do começo da história. Solange ria e chorava ao mesmo tempo, queria abraçar a todos.
- Fizemos esta surpresa porque você é muito especial para nós, Sola.
- Nunca soubemos expressar tantas alegrias que você nos deu, Solzinha.
- Que Deus continue te fazendo esta pessoa tão gentil.
- Ah...não sei dizer nada tão chique...vem cá e me dá um abraço, Solange!

Foi ouvindo estas palavras que a aniversariante terminou o seu dia. Acabou adormecendo ao lado da amiga no sofá da sala. De pantufa, descabelada, sem escovar os dentes sujos de bolo de chocolate e brigadeiro. Estava feliz. Descobriu aos 18 anos que amigos são assim mesmo: muitas vezes não dão as caras, te deixam de lado, mas jamais te esquecem. Cortam os cabelos, pôem Botox, ficam velhos e rechonchudos, mas jamais te esquecem. E mais: são essenciais para a vida de qualquer um, nem que o primeiro seja um patinho amarelo de borracha.


* Jornalista e professora de Inglês na Faculdade de Campo Limpo Paulista desde 2003






Um comentário:

  1. Sacanagem. Deveriam ter-lhe inventado uma desculpa e feito ela se arrumar.

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