domingo, 15 de abril de 2018

Do rés do chão para o Olimpo - Felipe Reinhart


Do rés do chão para o Olimpo

* Por Felipe Reinhart

Confesso que soube do teu aniversário de 100 anos, comemorado sábado (12/1), por um jornal paulista, Rubem Braga. Não acho que gostarias de uma festa com música alta, canapés gordurosos, mulheres siliconadas e uísque de procedência duvidosa para celebrar o teu centenário de nascimento – nem talvez caderno especial, suplemento grampeado ou edição extraordinária. Defendo, porém, que merecias mais que uma matéria que comparou a tua efeméride retumbante com a dos 90 anos do teu amigo Sérgio Porto, que caíra no dia anterior, sexta-feira.

Escreveu lá o repórter que tu, Braga, estás ganhando reedições, que pesquisadores preparam para breve o lançamento de volumes de inéditos teus, que uma exposição em Vitória vai relembrar a tua vida errante e a tua obra inesquecível. Para o Stanislaw Ponte Preta, nem livro, nem brinde, nem novidades, nem lambe-lambe pendurado na parede do museu.
Ora, esse confronto de cuidados com o legado de vocês, feito assim, com frieza jornalística e nenhum brilho literário, bem sabes, é expediente de paulista, que volta e meia encontra um jeito de expor a sua solidão sem tamanho e a sua felicidade nunca plena agarrando-se ao contorcionismo dos números e açulando rixas caducas. No Rio, tenho certeza, os jornais devem ter sido mais generosos com vocês.

Registro digno

Todavia, alguém de bom senso lá da sucursal carioca do jornal paulista foi à Barão da Torre investigar o estado de conservação do teu jardim suspenso, projetado pelo Burle Max e agora sob os cuidados do teu filho Roberto, que vive com a mulher na cobertura invejável. E escuta só que notícia boa: o menino tem metido a mão na terra e laborado como gente grande, e as plantas, as árvores, os passarinhos, o verde das folhas e o colorido das flores estão vivíssimos, como quando os deixaste.
De lá de cima não se tem mais a vista para a praia de Ipanema e para a Praça General Osório, pois prédios enormes foram erguidos ali em volta, e é preciso reconhecer que a morte do teu vizinho Millôr Fernandes agravou ainda mais a aridez do entorno. No entanto estão lá a jabuticabeira, a pitangueira, a goiabeira e até a rede na qual te deitavas para olhar o Rio e sentir saudades de Cachoeiro do Itapemirim.
Arrisco dizer que se o jornal tivesse tratado só do pomar e só da horta, sem os mexericos de um ganha isso, outro não ganha nada, teria oferecido aos leitores um registro muito mais simpático e digno da tua memória.

Coxas e seios


Olhando a semana que passou em retrospecto, me lamento por não ter percebido, aqui de Florianópolis, a aproximação do teu aniversário, e ter deixado que uma reportagem ingrata de jornal me pusesse a par do assunto. Pistas não faltaram, e eu só as reconheço agora.
Imagine que descobri no Centro da cidade um sujeito que esmola livros. Ele fica sentado numa curva de escadaria, sobre um pedaço de papelão coberto por romances baratos, e escreveu assim numa tira: “Aceito doações”. Pois na terça-feira eu passei os olhos sobre as mercadorias dele, voltando do almoço, e havia coletânea tua à venda, mas eu não percebi a tua presença.
Na quinta de manhã, no ônibus a caminho do trabalho, ouvi a música: era clássica, ou erudita, com violino, harpa, contrabaixo, tuba e fagote, tensa, nervosa, irrequieta. Ninguém portava radinho. E então fez-se a crônica, e eu imaginei que, sem saber, estávamos todos ali dentro rumando para um fim trágico, com a trilha sonora adequada, à lá tristes heróis gregos! Por isso, até o momento em que desembarquei, tossi em protesto ao ranger dos violinos, como aprendi contigo, que padecia de acessos de pigarro no teatro tão logo a primeira nota da orquestra fosse exigida pela batuta do maestro. Mas eu não percebi a tua presença.
No sábado do teu aniversário, só fui me dedicar à leitura depois de completar as tarefas da casa. E ouve essa: já faz uns meses que eu ando pondo em prática umas iniciativas de agricultor, e encasquetei, como resolução de ano-novo, que devo juntar às ervas que cultivo na sacada – alecrim cheiroso, salsinha selvagem e manjericão perfumado – um vaso grande, para plantar alface. E foi depois de pensar mais uma vez nas dificuldades desse projeto que eu peguei o jornal, e lá estava o teu jardim suspenso em fotos coloridas, vivíssimo, riquíssimo, onde de tudo dava e tudo nascia, menos dinheiro. E eu não percebera a tua presença.
No domingo, o mesmo jornal da véspera se redimiu da ranhetice e recuperou uma crônica tua, de 1952, sobre o joelho de uma amiga. Escreveste: “Há homens que não são atentos aos joelhos, nem reparam como eles mudam de personalidade quando a perna se estende e se dobra, ou melhor, como a personalidade de cada um depende de sua mudança nesse jogo”. Nada mais perspicaz. Mas o melhor estava no fim: não ficavas reparando muito no joelho, para que a amiga não pensasse que estavas de olho era na coxa. Eu gelei. Por sofrer de fotofobia, eu deveria usar óculos escuros, principalmente na praia, mas jamais consegui: me tortura a ideia de que as mulheres achem que, enquanto converso com elas, estou na verdade admirando coxas e seios, espertamente. E por elas eu deixo que o sol castigue os meus olhos…
És mestre até nas excentricidades e nos pudores, velho Braga! E eu te admiro ainda mais por isso.
Um forte abraço desse teu leitor

(Texto reproduzido do Observatório da Imprensa”, publicado em 22 de janeiro de 2001).


* Jornalista e editor do blog “Olhar sobre a Ilha”.

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