domingo, 15 de abril de 2018

Despretensão - Rosana Hermann


Despretensão


* Por Rosana Hermann


Quase todas as coisas que dão certo começam da mesma maneira, despretensiosamente. Os ateus devem ter outra explicação mas para os tementes a um Ser Superior a resposta óbvia é que D’us não gosta de pessoas pretensiosas; talvez, por ser o Criador Supremo, não queira ver suas criaturas tentando ditar os rumos de seus destinos. Fato é que, quanto mais a gente planeja, menos as coisas seguem nossos planos. Como diria Nelson Rodrigues, é batata.

Tirando o lado religioso da questão, no entanto, é possível imaginar uma outra razão que corrobore o fato. Quando fazemos alguma coisa apenas pelo prazer, pela diversão, sem nenhuma pretensão de sucesso ou lucro financeiro, toda a nossa energia e capacidade estão concentradas naquilo. Como não há objetivos a serem alcançados, não invocamos o passado e nem focamos no futuro apenas vivemos aquele momento em toda a sua intensidade, com alegria e leveza. Mais além, todos os nossos sentidos estão abertos, porque não estamos pensando, esperando, supondo. Estamos apenas realizando algo que nos faz bem.

Um dos grandes exemplos que vi nesses últimos tempos foi o de uma banda de rock, composta por garotas, o Cansei de Ser Sexy. Nunca tinha ouvido falar nelas ou em suas canções e fui tomada de assalto ao ver dezenas de notícias sobre elas em importantes jornais europeus. A temporada da banda na Inglaterra, por exemplo, foi um sucesso estrondoso. Li em algum lugar que a Microsoft vai bancar parcialmente o trabalho do grupo. Curiosa, fui pesquisar para descobrir. As garotas começaram a tocar e cantar sem a menor pretensão. A reunião das pessoas contou com vários casos do acaso, com encontros totalmente fortuitos. Aliás, ninguém sabia tocar direito nenhum instrumento ou cantar de forma afinada. Era pura diversão. Os shows pareciam brincadeira de adolescente. E eram.

As letras foram sendo compostas, elas foram sendo e fazendo o que eram e queriam, nada mais. Formadores de opinião do mundo da música e da moda logo reconheceram ali esta rara matéria-prima no showbiz, a despretensão aliada à diversão em seu estado mais puro. O sucesso foi imediato. E global, bem coerente com os tempos de Internet.

Muito provavelmente o CSS, como é chamado, será obrigado a cuidar dos negócios, da agenda e administrar todo o corolário de compromissos que advém do sucesso internacional. Mas nem isso deverá roubar delas este ar fresco de originalidade que elas definitivamente têm.

Num mundo tão infeliz que privilegia apenas a imagem, que busca o sucesso a qualquer preço, que abre mão da ética e da sinceridade para chegar ao sucesso como se ele fosse um lugar permanente no alto do Olimpo, é estimulante ver a simplicidade do acaso triunfando sobre o controle mercadológico.

Foi a mesma despretensão que levou os garotos do YouTube, hoje milionários, a criar o site, apenas para ter um lugar onde hospedar seus próprios vídeos. Foi assim que os criadores do ICQ fundaram a Mirabilis. Foi assim que outra dupla criou o blogger.com, vendido para o Google. Bill Gates, Steve Jobs, as garotas do Cansei de Ser Sexy ou de Amir Slama, exportador mundial dos biquínis Rosa Chá começaram em garagens, criando, trabalhando, a partir do nada.

Fica então a lição. Seja o que você é, faça o que você gosta, trabalhe com prazer, crie com alegria. Viva mais e pense menos. Acredite mais e sonhe menos. Permita que o acaso participe da sua vida. E lembre-se, que assim como a pressa é inimiga da perfeição, o sucesso é o maior inimigo da pretensão.

*Rosana Hermann é Mestre em Física Nuclear pela USP de formação, escriba de profissão, humorista por vocação, blogueira por opção e, mediante pagamento, apresentadora de televisão.




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