domingo, 15 de abril de 2018

Fôlego para o trabalho - Pedro J. Bondaczuk


Fôlego para o trabalho



* Por Pedro J. Bondaczuk


O ato de produzir – seja um móvel, uma peça, um carro ou um poema, um conto, um quadro, uma sinfonia – requer uma série de requisitos. Em primeiro lugar, a pessoa que se dispõe a executar essa tarefa de criação (ou de transformação) tem que estar preparada para ela. Precisa saber fazer e não apenas querer, partindo de uma boa ideia. Em segundo lugar, a obra em questão precisa ser factível. Em terceiro, é necessário haver a matéria-prima necessária e o instrumental adequado para a produção. E os requisitos não param por aí. Passam pelo planejamento, pela pesquisa, pela medição etc. Mas, sobretudo, é necessária uma dose adequada de trabalho, sem a qual o que se idealizou não passará de simples ideia.

Estas considerações vêm a propósito daquilo que muitos pseudo artistas, ou seja, leigos que pretendem invadir searas que desconhecem, ou os que estão dando os primeiros passos no mundo fascinante, mas cheio de espinhos, das artes, denominam de "inspiração". E o que vem a ser isso? Ou melhor, existe aquela centelha súbita que faz com que uma determinada obra, qualquer que seja a sua natureza, brote do nada e já surja acabada? Claro que não! Alguns ingênuos acham que sim. Artistas e artesãos experientes admitem sua existência, mas atribuem-lhe importância bastante reduzida, ínfima, imperceptível no ato de produção. Para cada pessoa, a palavra "inspiração" tem um significado diferente. Para uns, é a ideia principal, o cerne, a alma que determina como vai ser a obra. Para outros, é a mera tomada de fôlego, a descoberta do caminho mais fácil para a execução do que foi antecipadamente planejado.

Raros são os escritores que se confessam satisfeitos com o resultado final de seus textos, sejam contos, poemas, romances, novelas etc. A maioria, antes de dá-los por concluídos, corta, refaz, acrescenta, modifica trechos, parágrafos, capítulos. Há, até, os que descambam para o exagero e reescrevem várias vezes o trabalho inteiro, produzindo cinco, dez, vinte ou mais versões. Eu já agi assim e inúmeras vezes. Existem casos em que o editor se vê forçado a interferir e "confiscar" os originais do escritor, caso contrário a obra acaba não sendo nunca publicada. Se deixar por conta do autor, o texto corre o risco de permanecer inédito, tamanha sua obsessão em busca do impossível: da perfeição. O que vem a ser isso? Excesso de perfeccionismo? Insegurança? Falta de talento? Não! Trata-se da busca da qualidade. É respeito pela própria imagem que o intelectual consciente possui. É esse zelo que impede (ou pelo menos ajuda a evitar) com que venha a cair em ridículo, por falta de autocrítica. É verdade que muitos exageram. Eu sou um destes.

Mário de Andrade, por exemplo, chegou a gastar mais de vinte anos para escrever um único conto, que poderia ter sido escrito em menos de meia hora. E ninguém, nem seu mais ácido crítico, se atreve a lhe negar o mérito de um dos monstros sagrados da moderna literatura brasileira. Muitos romances, hoje consagrados pela crítica e pelo público, tiveram gestações prolongadas, às vezes até de décadas. São estes os trabalhos que no fim das contas permanecem, e encantam, e se tornam paradigmas das novas gerações e findam por se constituir em modelos, em parâmetros, em clássicos literários.

Não basta, pois, a "inspiração", a fagulha, a centelha de uma boa ideia. Sem a técnica, sem o domínio do idioma, sem a verossimilhança do tema escolhido, ou mesmo proposto, sem a clareza e a concisão, sem a capacidade de prender a atenção do leitor, sem a constante e aguçada autocrítica, os escritores "inspirados" (ou artistas e artesãos quaisquer) jamais chegarão a lugar algum.

O saudoso poeta matogrossense Manoel de Barros deu a definição adequada para a questão. Acentuou: "Acho que a inspiração é um entusiasmo para o trabalho, um estado anímico favorável à poesia, mas não chega por si só a fazer arte. Seria, quando muito, uma erupção sentimental, brotoeja, esguicho romântico, soluço de dor de corno".

Por isso, quando um escritor compara a produção de alguma obra com as dores do parto, não há  exagero algum nessa figura de linguagem. Um texto em elaboração, antes de concluído, chega a "doer" no autor. A angústia, a preocupação, a insegurança e a incerteza quanto ao produto final constituem-se em medonhos pesadelos. E raros, raríssimos dos grandes mestres, depois da obra acabada, consideram que ela ficou exatamente como imaginaram quando se lançaram à empreitada. Inspiração? Existe por acaso?

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk


Um comentário:

  1. Escrever é trabalho pesado, dolorido e geralmente achamos que poderíamos ter feito melhor.

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