O
barco sobre a montanha
* Por Nei Duclós
Pelo excesso de uso, o globo tornou-se
quase todo escuro. Apenas na base um líquido viscoso se concentrava, luminoso,
como querendo pingar para fora da redoma. Talvez fossem mariposas e vagalumes
amassados, que penetraram no que pensavam ser um abrigo. A energia que
alimentava a esfera não tinha mais força para torná-la brilhante, como acontece
ciclicamente, quando então o conjunto parece um balão de gás que sobe
rapidamente para as estrelas. Essa escassez de uma fonte mais poderosa de luz
fazia com que a esfera, de rosto negro, apresentasse, no bojo iluminado aos
seus pés, o aspecto de um barco destacado no céu limpo e negro.
Imaginei que esse lastro misterioso,
idêntico a um sorriso, escancarava uma boca de comédia, embora o clima fosse de
extrema sobriedade. O visgo pesava e fazia com que o barco navegasse um pouco
acima da montanha, lugar onde permaneceu por horas, enquanto eu tentava
decifrar a charada, instalado na varanda, vizinha da noite infinita.
Era como as lanternas antigas,
carregadas no ombro, por viajantes que cruzavam o deserto aproveitando a
friagem da madrugada. Eles caminhavam penosamente, com sua luz a tiracolo, para
que pudessem ver peixes e lobos, já que no território do sonho tudo se mistura.
A montanha, parte de uma serra com seu desenho perfeito em contornos curvos de
tamanhos diversos, era a onda que tentava lamber o casco daquela embarcação que
jamais descia até à água dura da mata, que subia até o topo da elevação.
Havia um movimento pendular que
enganava os sentidos. Aquilo navegava sem sair do lugar, singrava um mar de
corcovas fixas e parecia tentar escapar da atração que sentia para enfim pousar
no cume desse oceano bruto. Mas havia algo que suspendia o globo, como se
realmente alguém a levasse no ombro e essa criatura, invisível, tinha a força
de dez gigantes.
Se a base iluminada imitava o barco,
que não se decidia se lambia as ondas ou não, o resto da esfera se mostrava
impassível, satisfeita talvez com seu aspecto de breu contornado por leve fio
de seda brilhante, que fazia uma perfeita bainha curva em forma de coroa. Era,
essa parte escura, como a vela do barco a desprezar o vento, já que se mantinha
pela majestade do que imaginava ser. Gostaria que me notasse, mas lembrei que todo
o espetáculo era compartilhado pelos habitantes dispersos desta ilha, que
vieram morar aqui para espiar o enigma.
Estamos marcados pelo inverno, que
incomodou na sua despedida, e o frio intenso tinha nos deixado exaustos de
tosses e febres. Agora, curados, repousávamos forçando a barra das estações,
querendo que o clima favorecesse o encontro na varanda gelada. Mas ainda é cedo
para o desfrute da paisagem. A aparição no horizonte, barco circunspecto de uma
noite que não dispensou ainda os favores do inverno, nos avisava que só uma
parte de nós brilha, enquanto o resto permanece envolto numa túnica de
mistério.
O importante é que por algum tempo
ficamos absortos no que vemos, deixando de lado o que nos atormenta. Notamos
que o Tempo é indiferente a tantos problemas e que podemos lançar sobre aquele
barco uma corda para nele amarrar o pensamento privado de grandeza. Ficamos
ali, presos na Lua Nova, como náufragos à espera de uma chance. Talvez o
Navegador, penalizado com nossa situação, puxe a corda e nos coloque dentro.
Ficaremos então no fundo da embarcação, com o olhar deslumbrado para a grande
abóbada escura que nos envolve, e que mostra, na superfície, um fio de renda
brilhante. É quando, de lá, abanamos para nós instalados na rede da casa,
enquanto aguardamos que a navegação encontre seu destino. Mas é tarde e vamos
dormir.
Quando dormimos, o navegador suspira e
define o rumo para longe, onde nosso olhar jamais alcança. Ele nos deixa sós,
com a imaginação carregada por um líquido viscoso de mariposas e vagalumes
esmigalhados. Os pés do Navegador pisoteiam aquela massa de almas encantadas,
enquanto sopra o vento da Noite interminável, companheira dos sonhos, irmã de
fantasmas, musa da poesia que enfim nos abraça.
*
Autor de três livros de poesia: “Outubro” (1975), “No meio da rua” (1979) e “No
mar, Veremos” (2001); e de um romance: “Universo Baldio” (2004). Jornalista
desde 1970 e bacharel em
História. Trabalha atualmente em Florianópolis, onde é
editor-executivo de duas revistas.
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