Desaprendendo
* Por Gustavo do Carmo
Delcir era
um homem inteligente. Uma enciclopédia ambulante. Conhecia todos os pensamentos
e seus filósofos desde a antigüidade.
Salivava fórmulas matemáticas. Vomitava teorias sociais. Arrotava estratégias
de investimento e marketing. Lia livros de quase mil páginas em apenas meia
hora por causa da leitura dinâmica que aprendeu sozinho. Seja em qual idioma fosse.
Sabia de mais coisas do que o narrador desta história.
Com a sua
inteligência fenomenal dava palestras sobre tudo. Auto-ajuda, motivação
empresarial, gestão de recursos humanos, análise de mercado, tendências
culturais, sociologia e fazia até preleção para time de futebol em véspera de
estreia de Copa do Mundo. Cobrava dez mil reais por hora, e ainda era concorrido. Claro que
enriqueceu com isso. Já tinha um patrimônio de oito milhões de reais.
Trabalhava
como consultor empresarial em uma multinacional de informática. Ganhava um
salário de cento e cinqüenta mil reais. Ao ordenado da empresa e o que recebia
pelas palestras somava ainda dois mil e quinhentos reais todo dia dando aula em
diversos cursos de graduação, pós-graduação, mestrado, doutorado, MBA e
politécnicos em faculdades de Economia,
Administração, Turismo, Direito e Comunicação.
Delcir graduou-se em todos os cursos em que dava aula.
Além da
riqueza material, também era saudável e feliz. Malhava todas as manhãs na
academia do prédio da cobertura triplex onde morava, no Leblon. Aos sábados praticava judô. Já era faixa preta.
Aos domingos, pesca submarina. Era casado com Lidiane, uma bela morena de olhos
verdes, barriga tranquinho e seios naturais bem fartos. Tinha acabado de saber que
seria pai.
Um dia,
tudo mudou. Teve um bom fim de
semana. Fora campeão de um torneio internacional de judô no sábado. Fez uma
excelente pesca no domingo. Malhou com vontade na manhã de segunda-feira. Por
volta das nove, esqueceu-se de um índice. Cinco minutos depois, de uma cotação.
Mais quinze, não conseguia fazer uma planilha. Já não sabia o que era um plano
de marketing.
Acreditou
que seria excesso de trabalho. Começou a pensar em pedir umas férias. Estava
trabalhando demais. Consultou um amigo que comentou: os lapsos poderiam ser
excesso de informação no cérebro. Desmarcou todos os compromissos para ir ao
médico. Este confirmou todos os palpites.
Não poderia
tirar férias, principalmente das universidades porque estava no meio do período
letivo. Mas pediu uma licença. Antes, tentou dar uma de suas inúmeras aulas.
Não conseguiu. Esqueceu-se de todo o conteúdo programático. Não soube explicar
nada. Isso se repetiu em todos os cursos que costumava lecionar. Os alunos, mesmo os mais imaturos de início de
faculdade, solidarizaram-se com
o professor. Mas ficaram perplexos com a queda de rendimento de Delcir. Tinha
umas vinte palestras pré-agendadas. Depois que deu um branco total e sair
vaiado em cinco delas, cancelou o restante.
Antes de
ficar um mês em casa ainda levou cinco ipons relâmpagos nas aulas de judô e
quase se afogou durante a pesca submarina. Para completar a série de problemas, a esposa romântica mudou de
comportamento. Tornou-se frígida e agressiva.
Voltou ao
trabalho com diversas queixas de falhas de projetos, relatórios e afins. Só não
foi demitido porque o diretor da empresa, seu amigo, ainda confiava nele. Mas
perdeu o crédito quando errou uma estratégia mais uma vez. Ganhou uma última
chance, porém, não deixou de ser punido. Foi rebaixado a assistente e seu
salário caiu para cinqüenta mil reais.
Envergonhado,
começou a faltar às aulas nas universidades onde lecionava. Algo que nunca fazia. Foi suspenso por um mês. O
azar continuou no esporte. No judô,
foi rebaixado à faixa marrom. Desistiu definitivamente da pesca submarina.
Delcir
ainda teve que presenciar um fenômeno surreal. A gestação do seu filho no
ventre de sua esposa começou a regredir até o óvulo ser desfecundado. Por pouco
não enlouqueceu. Lidiane, obviamente, o culpou pela regressão da gestação e
exigiu o divórcio.
Voltou a
morar na casa dos pais, em
Olaria. Consultou um psiquiatra. Deitado no divã, desabafou todos os problemas que
estava enfrentando nos últimos dois meses. A princípio, o analista prescreveu
um remédio e recomendou repouso com o diagnóstico de estresse crônico e excesso
de informação. Assustou-se e mudou de idéia quando soube da regressão da
gravidez da mulher e percebeu alguns sinais de comportamento infantil em seu
paciente. Tratou de encaminhá-lo a um ex-professor e especialista em problemas
paranormais. Delcir já estava convicto de que a sua vida estava andando para
trás como um cassete rebobinando. Tentou voltar à sua rotina normal.
Não
conseguiu. Foi demitido da empresa de consultoria, de todas as faculdades e não
teve mais nenhum convite para palestras. Ninguém queria saber de vida
decrescente, comprovada cientificamente ou não. Já não sabia de nada do que
aprendeu. Levava uma semana para ler uma única página de revista. No judô foi
sendo rebaixado de faixa aos poucos. Em dois meses voltou a usar a branca.
Os oito
milhões e seus apartamentos, carros luxuosos, iates e outros patrimônios
começaram a desaparecer. Foram vendidos pelos seus pais, já que Delcir também
não sabia mais fazer negócios. O dinheiro das vendas foi gasto para pagar o
tratamento contra a regressão. O restante sumiu num passe de mágica.
Em cinco
meses voltou a ser um analfabeto. Já estava com uma idade mental de três anos.
Os amigos desapareceram. Para eles, Delcir nunca existiu. Tentou procurar os
coleguinhas do primário. Todos adultos, a maioria ignorou. Alguns ficaram
assustados com o problema e com pena do rapaz.
Um médium,
consultado pelos desesperados pais de Delcir, encontrou a causa do problema. O
ex-executivo fora vítima de um feitiço espiritual rogado contra ele pelo antigo
namorado de sua bela ex-esposa. Pai Tetê já tinha um antídoto. Era tarde.
Delcir não andava mais e passou o resto da sua vida decrescente chorando e
chupando o dedo como um bebê recém-nascido, prestes a voltar para a encubadora.
* Jornalista e publicitário de formação e
escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz
Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos”.
Bookess
- http://www.bookess.com/read/4103-indecisos-entre-outros-contos/ e
PerSe
-http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.aspx?filesFolder=N1383616386310
Seu blog, “Tudo cultural” -
www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores
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