sábado, 25 de março de 2017

Caliente


* Por Flora Figueiredo


A orquestra atacou em ritmo de tango.
Ela abriu a boca num sabor morango
e rodopiou.
Ele a enlaçou satisfeito,
estufou o peito,
tentou o passo.
O bigodinho engomado,
cheirando a brilhantina o cabelo empastado,
uma decadência, um descompasso.
(Às vezes solene, às vezes safado.)
Ela equilibrou enquanto pôde
a rosa no decote
até que o som entrou em foxtrote
e ela se descompôs:
ressurgiu o brilho sob o pó-de-arroz
e as rodas de carmim a colorir a face
desbotaram-se até que nada mais restasse.
Antes que a música mudasse novamente,
ele insinuou-se num sorriso convincente,
ela cedeu.
Foram se beijar num canto escuro,
com a lua enternecida por detrás do muro
e sobre a rosa amanhecida o dia apareceu.



In Florescência, 1987

* Poetisa, cronista, compositora e tradutora, autora de “O trem que traz a noite”, “Chão de vento”, “Calçada de verão”, “Limão Rosa”, “Amor a céu aberto” e “Florescência”; rima, ritmo e bom-humor são características da sua poesia. Deixa evidente sua intimidade com o mundo, abraçando o cotidiano com vitalidade e graça - às vezes romântica, às vezes irreverente e turbulenta. Sempre dentro de uma linguagem concisa e simples, plena de sutileza verbal, seus poemas são como um mergulho profundo nas águas da vida.




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