Diário, seu inútil
* Por
Marcelo Sguassábia
Escrever um diário
pressupõe a tentativa de não deixar tudo por conta da volátil memória humana,
de capturar um pouco do que se vive hoje para degustação futura. Isso significa
registrar o que de objetivamente acontece mas também, e principalmente, o subjetivo
de cada experiência - ou pelo menos dos acontecimentos principais. Sem esse
detalhamento, um diário não tem função.
Se excessivamente
sumário, um típico dia de semana de um sujeito de classe média, com perfil no
instagram e vacinado contra caxumba, traria algo assim:
05 de maio de 1980,
segunda-feira. Acordei às seis. Exercício das 6h05 às 6h35. Café da manhã.
Trabalhando das 8 às 12h. Almoço das 12 às 14h. Trabalhando das 14 às 18.
Jantar. Assistindo televisão até 23h30.
Imagine isso sendo
lido décadas depois. Sem detalhamento essa descrição de tarefas não significará
nada, pois não reconstituirá aquele dia na mente de quem o viveu. Pior: levando
em conta o fato de que a rotina, justamente por ser rotina, tende a se repetir,
todos os registros serão muito iguais - à exceção de um ou outro episódio mais
marcante, a ser resumidamente descrito pelo preguiçoso memorialista. De onde se
conclui que um diário é tanto mais eficiente quanto mais detalhado puder ser.
Por outro lado, partir
para um diário excessivamente descritivo também será perda de tempo. Vamos
supor um início de diário aos 20 anos e término aos 70. Calculando uma
expectativa de vida de 80, nosso registrador de fatos terá apenas 10 anos para
ler o relato em detalhes de tudo o que vivenciou ao longo de 50. Afinal, foi
com a intenção ler um dia suas recordações que ele decidiu encarar a
empreitada. Acontece que não faz sentido ele gastar seus últimos 10 lendo o que
viveu, ao invés de viver o que lhe resta. Parece exagero falar em 10 anos de leitura.
Porém, por mais que geralmente sobre mais tempo aos idosos, eles tendem a
executar tudo mais lentamente, e a depender da prolixidade do diário, será essa
a sua tarefa principal até bater as botas.
A inutilidade do
diário não para por aí. Relatos detalhados incluem opiniões do autor a respeito
de outras pessoas, nem sempre muito elogiosas. Deixar isso por escrito para a
posteridade pode ser perigoso, comprometedor e, dependendo do naipe dos
personagens, trazer boas encrencas jurídicas. Para evitar aborrecimentos, seu
dono terá que exterminá-lo antes de morrer. E se morrer de repente não poderá
fazê-lo, deixando de herança uma bomba de imponderável potencial de destruição.
04 de março de 2017,
sábado. Se pensa em começar o seu, desista. Se já tem, toque fogo.
* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs:
WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e
WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
Aos oito anos escrevi um diário de viagem, que ainda guardo comigo. Tenho também um diário escrito dos 12 aos 16 anos, sem faltar um dia sequer. Quando leio vejo a minha pobreza de pensamentos, enlevo, contemplação. Raramente leio alguma coisa dele. Mostra-se pois, inútil.
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