“Faz
a colher de pau e ainda borda o cabo” (Milena Narciso)
* Por
Mara Narciso
Na década de 1960, sem
dizer de onde veio, Marcolina de Tal, vulga Cula, apareceu. Dizem que
trabalhava numa fábrica de tecidos que foi a falência. Mocinha nova recebeu
como salário peças de tecido e teve de vendê-las para sobreviver. Depois disso,
ofereceu-se como lavadeira. Contava 1 m e 40 cm e 40 kg, talvez, pele escura,
cabelos escorridos presos num coque com dois grampos, dentes estragados, um
vestido cinza, reto e sem modelo, com decote em V, com combinação, porém sem
sutiã. Pés curtos e largos, descalços durante o trabalho no tanque, quando
chegava portava sandália de borracha velha, com tiras de outra cor. Nenhuma
vaidade, essa era Cula, a trabalhadora, que lavava roupas em casa de família, e
no nosso caso, família pobre. Quantos anos teria? Uns 30 ou 40, quando começou
conosco, mas isso nada mudava em seu status quo: mulher da classe social mais
baixa possível. E nada mudou nas décadas em que trabalhou duro.
Fora abandonada pelo
companheiro, não tinha filhos, morava num quartinho com a mãe Josefina, a irmã
Ana, dois sobrinhos e a sobrinha, Vânia. Apenas Cula trabalhava, pois a irmã
sofria de problemas mentais. A sua família tinha um aspecto faminto, andava em
molambos, e de tão humilde, quase não falava. Os olhos diziam tudo: fome. Cula
era o esteio de todos eles. Eram tão pobres, que a imagem impressionava. No
único cômodo em que os seis se escondiam, o pequeno espaço servia para tudo.
A maneira de Cula
trabalhar era única. Enquanto quase todos os trabalhadores domésticos dormiam
no emprego, e em caso contrário, chegavam às sete horas da manhã, a lavadeira
aparecia depois das dez horas. Tinha afazeres em casa e só vinha deixando
comida pronta. Tomava café com pão e pegava as roupas para lavar e arrumar.
Como recebia por dia, o dobro do habitual, para a minha família era um serviço
caro, mas que valia a pena. Ela vinha a cada quinze dias, só cuidava da “roupa
boa”: ternos, seda, linho. Roupas melhores, as de ir à missa não se usavam numa
horinha e se lavava, mas se “limpava e passava”, e nisso ela era excelente.
Fazia renascer roupas
com seus cuidados de exímia profissional. Os recursos técnicos não existiam
para ela, mas lavava a seco, limpava com álcool e deixava tudo feito novo.
Quando lavava com água, também engomava, deixando o tecido estalando de novo.
Tinha uma técnica de colocar dentro da roupa uma espécie de almofada para
abri-la e não deixar nenhuma dobrinha. Lenta, rendia poucas peças, mas não se
limitava a fazer o serviço, ia muito além do necessário, atingindo a perfeição.
Também cerzia de forma mágica, reutilizando fios do mesmo tecido, sem deixar
rastros.
Atendia a outras
pessoas da minha família, mas, ainda que trabalhasse todos os dias, não
conseguia progredir. Ficava de pé até a noite, por volta das 21 h, quando a sua
cuidadosa família chegava para buscá-la. Não falhava. Vinha de mansinho, na
ponta dos pés, subia as escadas escuras, do nosso prédio feio, decadente e com
lâmpadas queimadas, no centro da cidade. Este ficava aberto a noite toda e não
havia roubos. Éramos puros, os bons e os maus. Então, vendo que Josefina, Ana e
os filhos estavam amarelos de fome, Du, a cozinheira, trazia comida numa
panela. A avidez com que comiam, e eu presenciava, demonstrava o quanto
precisavam daquele alimento.
Após receber o combinado,
Cula partia com os seus. Não sem antes levar alguma coisa. Sim, a mania de Cula
era pedir, e minha mãe, Milena, mesmo sem poder, tentava atendê-la. Depois de
parar de trabalhar e parte da sua família, mãe e irmã, já ter morrido, minha
mãe ainda a ajudava nas contas, remédios e consultas. Então, Milena morreu e ela continuou a vir
com pedidos de gás e outras despesas. Recebeu o que precisava, mas eu não tive
tanta abnegação e disse que não podia servi-la para sempre. Desde então, nunca
mais a vi. Soube que morreu. Eu não sou tão boa quanto era minha mãe, nem tão
boa quanto Cula, alguém com mãos de fada e coração de anjo, que nasceu para
servir. Silenciosamente.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
O fato é que Culas não existem mais. Nem pra remédio... Penso que, com suas qualidades e defeitos, feliz de quem teve uma como parte de sua vida. Abraços, Mara.
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