quarta-feira, 10 de agosto de 2016

“Faz a colher de pau e ainda borda o cabo” (Milena Narciso)

* Por Mara Narciso


Na década de 1960, sem dizer de onde veio, Marcolina de Tal, vulga Cula, apareceu. Dizem que trabalhava numa fábrica de tecidos que foi a falência. Mocinha nova recebeu como salário peças de tecido e teve de vendê-las para sobreviver. Depois disso, ofereceu-se como lavadeira. Contava 1 m e 40 cm e 40 kg, talvez, pele escura, cabelos escorridos presos num coque com dois grampos, dentes estragados, um vestido cinza, reto e sem modelo, com decote em V, com combinação, porém sem sutiã. Pés curtos e largos, descalços durante o trabalho no tanque, quando chegava portava sandália de borracha velha, com tiras de outra cor. Nenhuma vaidade, essa era Cula, a trabalhadora, que lavava roupas em casa de família, e no nosso caso, família pobre. Quantos anos teria? Uns 30 ou 40, quando começou conosco, mas isso nada mudava em seu status quo: mulher da classe social mais baixa possível. E nada mudou nas décadas em que trabalhou duro.

Fora abandonada pelo companheiro, não tinha filhos, morava num quartinho com a mãe Josefina, a irmã Ana, dois sobrinhos e a sobrinha, Vânia. Apenas Cula trabalhava, pois a irmã sofria de problemas mentais. A sua família tinha um aspecto faminto, andava em molambos, e de tão humilde, quase não falava. Os olhos diziam tudo: fome. Cula era o esteio de todos eles. Eram tão pobres, que a imagem impressionava. No único cômodo em que os seis se escondiam, o pequeno espaço servia para tudo.

A maneira de Cula trabalhar era única. Enquanto quase todos os trabalhadores domésticos dormiam no emprego, e em caso contrário, chegavam às sete horas da manhã, a lavadeira aparecia depois das dez horas. Tinha afazeres em casa e só vinha deixando comida pronta. Tomava café com pão e pegava as roupas para lavar e arrumar. Como recebia por dia, o dobro do habitual, para a minha família era um serviço caro, mas que valia a pena. Ela vinha a cada quinze dias, só cuidava da “roupa boa”: ternos, seda, linho. Roupas melhores, as de ir à missa não se usavam numa horinha e se lavava, mas se “limpava e passava”, e nisso ela era excelente.

Fazia renascer roupas com seus cuidados de exímia profissional. Os recursos técnicos não existiam para ela, mas lavava a seco, limpava com álcool e deixava tudo feito novo. Quando lavava com água, também engomava, deixando o tecido estalando de novo. Tinha uma técnica de colocar dentro da roupa uma espécie de almofada para abri-la e não deixar nenhuma dobrinha. Lenta, rendia poucas peças, mas não se limitava a fazer o serviço, ia muito além do necessário, atingindo a perfeição. Também cerzia de forma mágica, reutilizando fios do mesmo tecido, sem deixar rastros.

Atendia a outras pessoas da minha família, mas, ainda que trabalhasse todos os dias, não conseguia progredir. Ficava de pé até a noite, por volta das 21 h, quando a sua cuidadosa família chegava para buscá-la. Não falhava. Vinha de mansinho, na ponta dos pés, subia as escadas escuras, do nosso prédio feio, decadente e com lâmpadas queimadas, no centro da cidade. Este ficava aberto a noite toda e não havia roubos. Éramos puros, os bons e os maus. Então, vendo que Josefina, Ana e os filhos estavam amarelos de fome, Du, a cozinheira, trazia comida numa panela. A avidez com que comiam, e eu presenciava, demonstrava o quanto precisavam daquele alimento.

Após receber o combinado, Cula partia com os seus. Não sem antes levar alguma coisa. Sim, a mania de Cula era pedir, e minha mãe, Milena, mesmo sem poder, tentava atendê-la. Depois de parar de trabalhar e parte da sua família, mãe e irmã, já ter morrido, minha mãe ainda a ajudava nas contas, remédios e consultas.  Então, Milena morreu e ela continuou a vir com pedidos de gás e outras despesas. Recebeu o que precisava, mas eu não tive tanta abnegação e disse que não podia servi-la para sempre. Desde então, nunca mais a vi. Soube que morreu. Eu não sou tão boa quanto era minha mãe, nem tão boa quanto Cula, alguém com mãos de fada e coração de anjo, que nasceu para servir. Silenciosamente.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



Um comentário:

  1. O fato é que Culas não existem mais. Nem pra remédio... Penso que, com suas qualidades e defeitos, feliz de quem teve uma como parte de sua vida. Abraços, Mara.

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