quarta-feira, 3 de agosto de 2016

A pobreza tem alma de Vazinguiton


* Por Hernando Calvo Ospina


Tradução de Urda Alice Klueger


Ao atravessar a rua lutava até com a leve brisa que nas tardes quentes vinha da montanha, para que ela não o jogasse ao chão e não o derrubasse. A busca de sobras no lixeiro que se amontoava numa esquina, duas quadras abaixo, fazia-a pela manhã. Nunca se soube que lutou por um osso com outro cachorro ou rato. Ia e voltava com seu passinho típico: meio de lado, como que arrastando as patas, cabisbaixo, as orelhas caídas e sem pressa.  Nem o que achava no lixeiro nem o as sobras que lhe davam em sua casa eram suficientes para engordá-lo, pois as costelas saltavam acima de seus pelos cinzentos. Mudo, discreto ou sem forças, o certo é que não lembro de tê-lo escutado latir. Ninguém sabia sua idade ou quem era sua família.

Um dia apareceu com seu caminhar de lado, sulcando a rua de terra pura, no meu velho e humilde bairro de Cali, no sudoeste da Colômbia. A ele não importou que estávamos jogando futebol. Nós, ao ver a terrível indiferença do forasteiro diante da vida, paramos o jogo para que passasse. Não se sabe por que, entrou sem pedir permissão em uma casinha de tábuas que existia em frente da minha casa, a qual tinha um só espaço que servia de sala de jantar, dormitório e cozinha. Foi direto para debaixo de uma das três camas e pôs-se a dormir. Diante de tal ousadia, os donos nem se atreveram a protestar. Preferiram adotá-lo. Horas depois, quando saiu até a porta, os demais cachorros vieram cheirá-lo e foi aceito. Para nós, um cachorro a mais não era problema.

Em seguida veio a grande discussão: como chamá-lo. E com o noticiário da rádio veio o nome. O bando de meninos decidiu que se chamaria Vazinguiton. Ninguém perdeu saliva tratando de corrigir a pronúncia, porque todos nós ouvíamos Vazinguiton, e não Washington.

Apesar do seu deplorável aspecto, que incluía princípios de sarna nas orelhas e no rabo, Vazinguiton era a nossa admiração. Durante vários dias, quando nas tardes voltávamos da escola, nos reuníamos para falarmos de seu aspecto e escassa vitalidade. Uma ventania o levaria como folha seca ao vento; várias vezes ficou imobilizado nas poças de lama que a chuva formava na rua, e ali íamos para servir-lhe de guindaste. Porém Vazinguiton tinha uma particularidade admirável.

Das quarenta casas e casinhas que deviam existir nas duas quadras da vizinhança, pelo menos numas trinta se dividiam os modestos alimentos com cachorros, cachorras, gatos e gatas. Quando uma dessas fêmeas caninas entrava no cio e começava a buscar namorado, a rua se punha em efervescência. Era um espetáculo ver dez ou quinze cachorros cercando e montando a cachorra por qualquer lado. Diante de tanto assédio, ela se jogava ao chão e começava a distribuir mordidas, porém nem assim a deixavam tranquila. E começavam as brigas entre os cachorros, que acreditavam que o mais forte seria aceito para um breve romance. Não existiam aliados, era uma disputa de todos contra todos.

Vazinguiton preferia observar a cena de uma prudente distância. Justamente no momento em que a guerra canina estava no auge, Vazinguiton se acercava da cachorra, cheirava-a, lambia-a, e ela como que hipnotizada se levantava e saía atrás desse eleito sem garbo. Os lutadores se davam conta e se precipitavam no meio de latidos atrás da cachorra e até mordendo o imutável Vazinguiton.

Demasiado tarde. Se o dono da cachorra não se interpunha, no meio das dificuldades da guerra estabelecida, Vazinguiton fazia com que ela entrasse na casinha. Os proprietários de encarregavam de fechar a passagem aos mais raivosos e excitados pretendentes. Vazinguiton  levava a namorada diretamente ao prato metálico aonde se serviam  os restos de comida, oferecendo a ela o pouco que havia, e que ela acabava em duas lambidas. Com a tranquilidade assegurada, ela entrava no jogo amoroso de Vazinguiton, debaixo da sombra de uma mangueira. Ali comprovava o que muitas cachorras da vizinhança comentavam: sem fazer filhotes, era ele o melhor amante.

Quando me perguntam sobre a minha infância e meu bairro, conto da sua alegria, da vizinhança solidária, da sua pobreza, e de Vazinguiton.


(Traduzido em novembro de 2012, quando foi publicado no Literário. Republicamos a pedidos).

* Hernando Calvo Ospina é jornalita colombiano, residente na França e colaborador do Le Monde Dipomatique. Seu mais recente livro, traduzido para seis idiomas, é “Cala e respira”, publicado em espanhol pelo El Viejo Topo. Sua página WEB: HTTP://calvospina.free.fr/


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