Aldeia
e mundo
“Agora que me vou é que me deixo
ficar perdidamente nesta estrada:
vou numa roda viva, mas sem eixo,
numa coisa futura, mas passada.
Vou e não vou e assim se vai compondo
o que me está aos poucos dividindo:
não a zoada azul de um marimbondo,
mas a certeza de um amor tão lindo.
Alguma coisa vai ficando, além do
tempo em que me dou e me reparto:
ficou meu coração, ficou batendo,
batendo na penumbra de algum quarto.
Ficou o que mais quero e vai comigo:
molharam nalgum curso os seus cabelos
para compor as novas semifusas
dos meus silêncios, dos meus atropelos.
Mas no curso dos dias que há por dentro
de cada um de nós, na nossa história,
alguém por certo encontrará o centro
de tudo que ficou na trajetória.
E o que ficou, ficou: raiz noctuma
enterrada nas ruas, nos quintais;
vento varrendo o pó de alguma furna,
chuvas de pedra, alguns trovões, Goiás”.
Vocês conhecem o autor deste magnífico poema? Caso a
resposta seja negativa, não sabem o que estão perdendo. Estes versos,
intitulados “No curso do dia”, são do poeta, ensaísta e crítico literário
goiano Gilberto Mendonça Teles, 79 anos de idade e 50 de (boa) literatura. O
poema que reproduzi está no livro “Saciologia goiana” (é “sa” mesmo e não “so”;
vem de saciedade e não de sociologia). Com mais de meio século de atividade,
este escritor erudito, mestre de literatura, tem que ser lido e estudado por
todos os que freqüentam este complicado, mas fascinante mundo das letras. E há
uma profusão de livros dele para ler. Só dos que consegui catalogar, são 23 de
poesias e mais 14 de ensaios. Provavelmente, a quantidade é muito maior. Mesmo
que não seja, todavia, convenhamos, trata-se de uma obra das mais consideráveis
(e notáveis).
Neste país de dimensões continentais, via de regra, escritores
que não residem e/ou não atuem no eixo Rio/São/Paulo/Belo Horizonte tendem a
ser pouco divulgados, a despeito da qualidade de sua produção. É uma pena que
isso ocorra. Não sei se este é o caso de Gilberto Mendonça Teles. Espero que
não. Ocorre que li poucas referências, quase nenhuma, a seu respeito nas seções
de literatura dos grandes jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Atribuo o
fato à desinformação dos editores. Afinal, Gilberto Mendonça Teles, membro da
Academia Goiana de Letras, é o escritor goiano mais conhecido no mundo, com
livros traduzidos para diversos idiomas e publicados nos principais países da
Europa. Convenhamos, não é pouca coisa.
Nacionalmente, também firmou prestígio nos meios
literários, quer por sua erudição, quer pela criatividade. Entre suas inúmeras
conquistas, tem um feito que raríssimos escritores já conseguiram: recebeu o
Prêmio Machado de Assis, considerado a maior premiação literária brasileira
(uma espécie de “Nobel tupiniquim”), outorgado pela Academia Brasileira de
Letras, pelo conjunto de sua obra. Como vêem, não exagero quando afirmo que
quem não conhece sequer uma obra deste escritor conta com contundente lacuna em
sua cultura.
Fiquei conhecendo os magníficos textos de Gilberto
Mendonça Teles quase que por acaso. Em 1984, meu amigo dileto e companheiro de
redação no Correio Popular de Campinas, o poeta e jornalista mineiro, natural
de Ouro Fino, Maurício de Moraes (já falecido), deu-me de presente um livro,
com a capa bastante machucada e com páginas grifadas com lápis vermelho do
início ao fim e recomendou-me que lesse com atenção e que não me limitasse a
ler, mas o estudasse, como ele já havia feito (daí o estado lamentável do
volume). Como sou um sujeito enjoado com essa questão de ordem, mandei o exemplar
para a encadernadora, antes mesmo de ler. E ele voltou com aspecto de novo,
pelo menos por fora, já que os grifos não havia como apagar. Mas estes até que
me ajudaram na leitura.
E querem saber qual foi esse livro? Foi “Drummond, a
estilística da repetição”, justamente de Gilberto Mendonça Teles, lançado pela
Livraria José Olympio Editora, em 1970, em comemoração ao jubileu de esmeralda
do poeta de Itabira. O lançamento integrou a magnífica coleção “Documentos
Brasileiros”. Oportunamente, prometo analisar em detalhes essa obra.
E por que o Maurício me deu especificamente este
livro, de tanta estimação sua e que lhe fora tão útil, e não outro qualquer, de
sua autoria, por exemplo? Por saber da minha apreciação (diria veneração) por
Carlos Drummond de Andrade, a quem não tive, é verdade, o privilégio de
conhecer pessoalmente, mas com o qual troquei algumas cartas (naquele tempo,
nem se sonhava com a existência dos e-mails, recorde-se). Gilberto Mendonça
Teles detectou, no estilo drummondiano, uma característica que, num poeta
inábil ou sem tanta habilidade, seria desastroso, mas que no menestrel de
Itabira é uma virtude, um charme a mais, uma façanha acessível a poucos: a
repetição de palavras.
Li o extenso e detalhado ensaio, em forma de livro,
primeiro num só sopro. Depois, como se faz com aquelas comidas deliciosas que
não comemos cotidianamente, mas apenas em raras ocasiões especiais, fui “degustando”,
por um tempo cuja extensão nem sei determinar, parágrafo a parágrafo, meditando
sobre o que lia, voltando atrás quando algum conceito um pouco mais complexo
não ficava bem “digerido” e, com isso, pude perceber a toda a extensão da
genialidade de Carlos Drummond de Andrade.
Ler sobre o poeta de Itabira, para mim, é imensa
satisfação, quase um delírio. Lê-lo, então, é um êxtase. E não me canso de
escrever a seu respeito, o que sua vasta obra me propicia sem cessar. Quanto
mais escrevo sobre ela, mais tenho a escrever. Mas, confesso, passei a ver seus
poemas com outro enfoque, sob outro prisma, dando-lhes ainda maior valor, desde
que li o livro de Gilberto Mendonça Teles (que parece que foi reeditado em
2005). E isso há já 26 longos anos! Voltarei, certamente, a tratar,
oportunamente, destes dois magníficos poetas.
Boa leitura.
O Editor.
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