Jorge Amado, um grande romancista
* Por
Nélida Piñon
Desde o berço, o
sobrenome de Jorge Amado emitiu sinais de que viria a ser amado pelo seu povo.
Aquele homem, que tinha a cara de árabe, mas de jeito baiano, estava destinado
a criar uma obra que deitaria raízes no imaginário da sua gente.
Tudo nele apontava
para essa configuração brilhante, particular e universal. Distinguia-se onde
estivesse. E não porque falasse alto, ditasse regras, adotasse atitudes
canônicas. Seduzia devagar, com os olhos vagando pelas paredes da sala e do
mundo. Andava, porém, com firmeza, diria mesmo com sutil leveza. Seu corpo
falava, tudo nele dizia que era alguém sabendo por onde pisava. Certo do seu
percurso.
Embora se sentisse a
gosto em Paris, em Barcelona, em Lisboa, em diversas cidades do mundo, onde
casualmente estivemos juntos, ostentava com naturalidade a sua condição de
brasileiro. Às vezes, usando camisas tropicais, outras vezes, em especial nos
últimos anos, envergando um terno nunca convencional, ou mesmo com o fardão da
Academia Brasileira de Letras, de que era membro. Mas sempre um cidadão da
Bahia que converteu o seu cosmopolitismo em matéria brasileira.
Comovia-me vê-lo ao
lado de Zélia Gattai, companheira inseparável de 50 e tantos anos, um amparando
o outro, cada qual se vendo no olhar que compartilhavam. Quantas vezes, entre
amigos, entretido com uma conversa alimentada de peripécias, era comum vê-lo
esquecer-se de algum detalhe rigorosamente insignificante. Nessas horas, porém,
sem sofrer por não se lembrar algo que bem poderia substituir pelos recursos da
invenção, aprazia-o recorrer a Zélia. Seu alter ego, sua mulher amada, cabia a
ela completar o que lhe estava faltando, de modo a continuar a sua narrativa
oral.
Zélia Gattai, então,
dona de uma memória a serviço de Jorge Amado, provia-o imediatamente com
receitas culinárias, com letras de bolero ou de tango, com evocações miúdas, o
que enfim lhe fizesse falta. Tudo a que ele próprio, grande romancista, não
daria aparente atenção, mas que estava certamente incorporado à sua matriz de
criação, capaz, portanto, a qualquer momento, de gerar preciosos elementos para
as suas construções ficcionais.
Jorge foi meu leitor,
nos idos de 60, antes mesmo da minha estréia literária, sem eu lhe ter pedido.
Confessou então haver gostado do livro. Suspeito, porém, que seu julgamento
estético obedecera a um rasgo de generosidade. Quem sabe enternecimento com uma
jovem que também elegera a literatura como forma de viver. Em quem via igual
paixão pelo romance que ele, com sua obra, demonstrava publicamente.
Recordo o jantar que o
compositor do musical Dom Quixote, grande sucesso então na Broadway,
ofereceu-lhe no restaurante Four Seasons, em Nova York, por motivo de Jorge e
Zélia Amado haverem legalizado naqueles dias uma união conjugal iniciada em
1945.
Com alegria os noivos,
em meio aos amigos, entre os quais se destacava o grande editor Alfredo
Machado, outro brasileiro cosmopolita, assopraram as velas do bolo de vários
andares, celebrando os filhos Paloma e João Jorge e os netos, que haviam ficado
na Bahia.
Ainda naquela semana,
celebramos na casa de campo de Alfred Knopf, fundador da mítica editora
americana, seus 80 anos. Tive, então, perfeita noção de estar presenciando o
singular encontro entre duas grandes personalidades do mundo da cultura,
enquanto bebíamos aquele champanhe americano que Nixon bebera com Mao-tse-Tung,
em Pequim, por motivo do reatamento diplomático entre a China e os EUA. Nessa
ocasião, registrei a naturalidade com que Jorge, sem esmorecer, sem
americanizar-se ou deixar de ser baiano, sabia bater à porta do mundo,
ostentando a chave de quem tinha uma casa simbólica a que retornar.
Inventou uma nação
chamada Bahia. Um território ficcional com personagens emblemáticos,
arquétipos, voltados para a aventura humana, a compaixão, as causas populares.
E no afã de dar-lhes vida, tomou de sua pena mágica e lambuzou-os de coesões,
sentimentos, sortilégios. Criou, enfim, histórias nascidas da inadiável
necessidade que temos de ver nossas histórias contadas.
Estou convencida de
que Jorge Amado e sua obra instalaram-se para sempre no coração brasileiro. Não
concebo o meu país sem as suas invenções narrativas ou sem ele mesmo ter
existido, para nos engrandecer.
Jornal do Brasil (Rio
de Janeiro) 14/12/2005
*
Escritora, jornalista e membro da Academia Brasileira de Letras.
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