quarta-feira, 22 de junho de 2016

Sonhos ou delírios políticos?

* Por Mouzar Benedito


Mexendo em papéis velhos, achei um folheto impresso há mais de trinta anos, que mexeu com minha memória.

Em 1985, quando se anunciava a eleição para criar uma Assembleia Nacional Constituinte havia muitas discussões sobre a Constituição que a gente queria.

Era um tempo de muita agitação. E de esperança, apesar do fim da ditadura não ter sido muito satisfatório, pois foi feito de uma forma que as figuras carimbadas do regime ditatorial continuaram dando as cartas na política. Mas enfim, tínhamos esperança de mudar as coisas.

Eu morava numa república numa casa grande da Vila Madalena, em São Paulo, e um bando de gente a frequentava. Todas as noites havia boas conversas regadas a boas cachaças e outras bebidas, sobre todas as coisas, inclusive política. Nessa fase imediatamente posterior à ditadura, a Constituinte passou a ser o tema mais discutido. Sabíamos que não dela não sairia a Constituição dos nossos sonhos, mas gostaríamos de ver na sua criação um monte de propostas que às vezes eram pra lá de utópicas.

Nesse grupo, a maioria era de petistas, mas havia várias pessoas do PMDB e do PCB, além de algumas não ligadas a nenhum partido. Eu era filiado ao PT.

A discussão cresceu. Em cada reunião, escolhíamos um tema e o debatíamos, sonhávamos. Dezenas e dezenas de pessoas palpitavam sobre tudo.

Chegou-se enfim à ideia lançar um candidato que — se fosse eleito — levaria para a Constituinte algumas ideias nossas, sabendo que seria mais para que a sociedade tomasse conhecimento delas do que esperando que fossem aprovadas. Mas quem se aventuraria a isso?

O folheto trazia uma lista dessas propostas e foi distribuído na Feira de Artes da Vila Madalena, com muita badalação.

E o candidato, lançado à minha revelia, era eu mesmo.

Deixei a poeira baixar e, para decepção de uns amigos, não aceitei a missão. Disse que numa eleição, havia duas possibilidades ruins: uma era perder; outra era ganhar.

Perder era aquela chatice, sensação de perda mesmo, mas ganhar representaria o compromisso de cumprir a missão dada, tendo que conviver com gente que me causava repulsa, bater em ferro frio, nadar contra a corrente num Congresso de maioria conservadora.

Não havia grande chance de ser eleito. Acho que quase nenhuma. Mas e se desse uma baita zebra? Como suportar um mandato de deputado?

Eu não aguentava trabalho chato, pedia demissão. No caso de ser eleito deputado constituinte, pegaria muito mal renunciar a um mandato dado por eleitores.

Se o exercício do cargo não se resumisse a atos e falas para marcar posição, mas tivesse como meta aprovar pelo menos as propostas menos utópicas, precisaria de negociar, trocar apoios, tratar como colegas um bando de políticos muito ruins.

Eu não teria estômago pra isso. Alguns bons parlamentares tiveram, negociaram…  Conseguiram algumas conquistas.

Relendo o folheto, me diverti vendo aquela enorme lista de propostas nossas. Vou contar algumas delas aqui.

Em termos de política nacional, eis um pouco do que propúnhamos:

– extinção do Senado, criando um sistema unicameral;

– criação sistemática de plebiscitos para a votação popular de grandes questões nacionais;

– fim do recesso parlamentar e do Judiciário…

Ah, queríamos também eleição em dois turnos para todos os cargos executivos. Não é que isso foi aprovado, menos para cidades pequenas?

Em termos de economia…

– estímulo à constituição de propriedades coletivas de produção agropecuária e cessação de concessão de subsídios a empresas privadas;

– fim do imposto de renda sobre salários e aumento substancial dos impostos sobre ganhos de capital.

– cessação de pagamentos de royalties pra uso de tecnologia gerada em centros desenvolvidos;

– reforma tributária, com distribuição da maior parcela da arrecadação aos municípios, e da segunda maior parcela aos Estados.

Sobre política externa, há coisas hoje superadas, como, por exemplo, rompimento com a África do Sul por causa do apartheid, mas destaco a declaração de inexistência da dívida externa contraída durante a ditadura e suspensão imediata de todos os pagamentos.

Em relação ao meio ambiente…

– controle obrigatório da emissão de poluentes pelas indústrias existentes e proibição de instalação de projetos industriais que não incluam sistemas de eliminação completa desses poluentes;

– tombamento imediato de todas as florestas do país, incentivo ao plantio de árvores para aproveitamento econômico em áreas desprovidas de cobertura florestal…

– arborização das regiões urbanas e margens de ferrovias e rodovias com árvores frutíferas;

– controle rigoroso do uso de defensivos, inseticidas, herbicidas…

– despoluição dos rios.

Para os meios de comunicação, propúnhamos, entre outras coisas, proibição de propaganda religiosa em TV e rádio; obrigatoriedade de transmissão em rede nacional de programas gerados em bases regionais, limitação do tempo das programações em rede nacional e revisão da política de concessão de canais de rádio e TV. Continuo querendo tudo isso, né?

No quesito transportes, incluímos a gratuidade de todo e qualquer meio coletivo de transporte nas regiões urbanas e estímulo à navegação fluvial e de cabotagem.

Há muitas outras coisas, como a proposta de socialização da medicina e da odontologia, a de autogestão dos trabalhadores em todas as empresas estatais, acesso pleno dos cidadãos a qualquer banco de dados que contenham informações a seu respeito, fim da tortura aos presos comuns e justiça sumária para os torturadores…

Mas uma proposta “maluca” do nosso folheto, que provocou reações (esperadas) foi a de extinção do direito de herança. Houve gente com discurso radicalmente “anticapitalista” que reclamou: “Meu pai trabalhou pra deixar pra mim…”. Aí, argumentávamos brincando: “Ora, a base do capitalismo é o direito de herança. Sem ele, logo todos os bens se tornarão públicos”… Rê-rê… Colou?

Mas o que mexeu comigo nessa releitura do folheto foi o seguinte: se na época eu achava que seria difícil conviver com aqueles políticos, quando vejo o nível do Congresso hoje, penso: até que eles não eram tão ruins assim. Havia políticos para os quais torcíamos o nariz que hoje são lembrados com saudade… Ah, os tempos mudaram. Na política, na qualidade dos políticos, não sei se foi para melhor.

* Jornalista


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