quinta-feira, 16 de junho de 2016

Queremos delatores covardes ou cidadãos timóticos?


* Por Paulo Ghiraldelli Jr.


Uma sociedade precisa antes de agentes timóticos, como Jesus.

Já há algum tempo participei de um programa na RIT TV cujo título era “Em briga de marido e mulher não se mete a colher?”. A ideia básica da conversa era sobre a interferência de um terceiro em conflitos domésticos. Um tema que, quando expandido, pode ganhar outro nome: “Vocês que são brancos que se entendam”. O que está no horizonte em conversas sobre isso é se podemos mesmo nos transformar em Zorros, cidadãos justiceiros que intervêm de peito aberto diante de violências privadas e públicas, ou se no fundo queremos apenas uma sociedade de grandes covardes, que fazem todo tipo de delação sem qualquer responsabilidade e checagem do que estão denunciando.

Parece bobagem essa questão, mas não é. Temos requisitado da sociedade, de uma maneira pouco clara, que nos posicionemos contra todo tipo de “situação errada” que vemos. A própria noção de democracia participativa tem, nas suas beiradas, exigido uma postura individual de apontar dedos para culpados aqui e ali. Mas, no meio disso, não sabemos se não estamos é criando a cada dia uma “caça às bruxas”, que é justamente a pior coisa que se pode ter em uma sociedade, ou se realmente estamos chamado cidadãos para intervenções necessárias. Não temos estudos sobre isso! Nossa sociologia é ideológica demais.

Posso pegar o telefone e discar para a polícia se vejo que estou diante de alguma coisa ruim que vai acontecer ou aconteceu. Não há dúvida. Mas, em clima de “caça às bruxas” (vamos matar comunistas ou pedófilos hoje?), devo pensar dez vezes se não estou sob forte campanha ideológica, que me instrumentaliza como um covarde delator ou no mínimo como um inconsequente e irrefletido peão em um xadrez que não entendo.

A denúncia anônima é bom instrumento. Os programas de proteção de testemunha devem sempre melhorar. Todavia, não falo dos mecanismos, falo da histeria das campanhas. As campanhas de denúncia têm um lado útil: velhos, crianças, animais, mulheres, negros,  mendigos, deficientes são, em geral, o alvo preferido dos sádicos babacas que nossa sociedade alimenta. Aliás, esses sádicos são úteis apenas no sentido de justificarem o injustificável, que é a voz reacionária de políticos aproveitadores, aqueles que vivem do ódio disseminado, pedindo pena de morte para tudo. Esses urubus de plantão são os demagogos da direita. Mas, o que penso que deve ser notado nisso tudo, é que as campanhas de denúncia não podem ser maiores que a ampliação da coragem. Se um garoto negro está sendo espancado na rua e, na TV, a dona repórter loira sugere que o espancamento continue, aí o caso não é de parar para a denúncia, mas o agir rápido e dizer: “basta! Vocês não podem fazer isso!”. Nessa hora, não surge nenhum Zorro, apenas um indivíduo que pode ser descrito melhor pela psicologia antiga que pela moderna: alguém com thymos – o órgão da ira, da fúria, da identidade – que tem orgulho de si mesmo, de sua posição corajosa diante da horda, de sua função de guardador presente da civilidade.

Já passou da hora de pensarmos em campanhas que sejam menos estúpidas que essa aí “homens contra a cultura do estupro”. Essas frases vagas só alimentam a inconsequência. Está na hora de conseguirmos construir mais e mais narrativas de cultivo da identidade timótica, de gente capaz de se orgulhar por cuidar moralmente do que é correto. Nesse caso, trata-se de gente que não admite a humilhação do mais fraco pelo mais forte – que é a própria definição de liberal para vários autores – e por isso mesmo é capaz de, no local onde as coisas acontecem ou estão para acontecer, dizer serenamente: “não, não, somos conscientes, cidadãos, isso não pode ser feito”. Precisamos ter essa atitude diante das agressões a todas as minorias, mas precisamos ter narrativas que nos levem a ter essa atitude mais ainda quando putas e moradores de rua estão passando por agressões, do mesmo modo que talvez tenhamos que ultrapassar a soleira da porta do outro, se há ali indícios de que um crime ocorrerá contra mulher ou criança ou animal e outros indefesos do lar.

Não há exemplo de Jesus denunciando alguém,  ou fazendo campanha, o que há é Jesus intervindo pessoalmente, contra a multidão, no caso do apedrejamento da mulher. Pense nisso mais seriamente.


* Filósofo

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