Acima dos muros
* Por
Eliane Brum
Em cima do muro.
Isentão. Colaboracionista do golpe. Covarde. Omisso. Ingênuo. Burro.
Estes são alguns dos
nomes dados a quem não está em nenhum dos lados do Brasil polarizado. Não se
alinha – muito menos se enfileira – nem na narrativa #ImpeachmentJá nem na
“#NãoVaiTerGolpe. Nem amarelo, nem vermelho. E, assim, é achincalhado pelos
dois lados, como traidor de ambos.
Como disse Bruno Cava:
“Me situo nesse lugar nada confortável de ser a esquerda que a direita gosta –
e a direita que a esquerda gosta. Mas que, no fundo, ninguém gosta. Lugar de
pensamento que ainda balbucia, mas que ainda pensa”. Ou, nas palavras de Bruno
Torturra, que se apresenta como “desidentificado”: “Prefiro a vertigem da
desidentificação do que o falso refúgio das bandeiras de sempre”.
Como afirmei em meu
artigo anterior, não estar em nenhum dos lados é posição. E forte. Silenciá-la,
pela desqualificação, é uma perda num momento em que, mais do que nunca, as
vozes precisam ser ampliadas e não reduzidas. Muito menos caladas. “Os
discursos partidários, pronunciados por muitos e sempre da mesma forma, têm
sufocado, com sua abundância repetitiva, os discursos independentes”, diz Pablo
Ortellado. Ou, na expressão de Moysés Pinto Neto: “É como um vórtice bipolar,
sugando tudo para seu interior e reduzindo todas as posições às suas
referências”.
O país está,
aparentemente, dividido por muros que impedem qualquer contato que não seja aos
gritos. Ou que se realiza pelo espancamento, na tentativa de deletar
literalmente o outro do espaço público. Os muros dos condomínios fechados, as
cercas eletrificadas ganharam as ruas. E ninguém mais se escuta, cada pessoa um
muro em si mesma, um portão armado, um vidro blindado e com insufilm.
É preciso promover o
desarmamento. É necessário tentar enxergar acima dos muros – e derrubá-los. Não
a marretadas, mas pelo instrumento mais subversivo desse momento histórico: o
diálogo. A conversa que só pode acontecer pelo reconhecimento do outro como
alguém que pensa diferente, não como um inimigo a ser eliminado.
É muito duro sustentar
o lugar de não saber. Penso que é com essa dificuldade que também nos
deparamos. Tenho dúvidas se não é por isso que uma parte das pessoas, à direita
e à esquerda, prefere aderir ao conforto de uma das narrativas, para pelo menos
se iludir que há uma resposta, que há alguém que sabe. Aderir como tentativa de
estancar a angústia de sentir-se sem chão. Talvez seja o momento de suportar o
não saber e acolher as incertezas. Mas em movimento, no movimento da busca.
No que se refere ao
campo das esquerdas, também tenho dúvidas se não há, de novo, mais uma
exortação ao “menos pior”, à eterna esperança da tal guinada à esquerda. Ou
algo correspondente ao “voto útil” aplicado às manifestações. Mais uma
conclamação, como se viu em eleições recentes e especialmente na última. Será
que os dias seguintes não mostraram, de forma bastante eloquente, que isso já
não deu certo? Que isso só alargou o abismo e que já passou da hora de encarar
o buraco e enfrentar os conflitos, por mais duro que seja, para que pelo menos
exista uma chance de criar possibilidades?
O diálogo é tão
urgente que tem de ser provocado em todos os lugares. Percebi que, neste
momento, nem na minha própria coluna de opinião posso falar sozinha. Convidei
para este espaço, para nos ajudar a nos movermos, para além do que cada um
acredita, algumas pessoas que têm ousado pensar e escrever, em geral em blogs e
nas redes, sobre esse momento tão movediço, em que poucos se arriscam a dizer
além do já dito. E a pensar fora das narrativas de adesão de um e outro lado.
Estas, que já decoramos.
Trago para este espaço
as vozes abafadas, as daqueles que não estão “em cima do muro”, mas “acima dos
muros”, no plural. Moysés Pinto Neto é escritor, professor da Universidade
Luterana do Brasil, graduado em direito e doutor em filosofia. Sua leitura do
Brasil pode ser acompanhada no blog O Ingovernável. Bruno Torturra se dedica a
experimentar novos caminhos para a participação política e para o jornalismo, a
partir das possibilidades de hiperconexão. Fundou a Mídia Ninja, essencial na
cobertura de Junho de 2013, e se distanciou dela a partir do final daquele ano.
Hoje, toca o Estúdio Fluxo. Pablo Ortellado é filósofo, professor do curso de
Gestão de Políticas Públicas na Universidade de São Paulo e coautor de Vinte
centavos: a luta contra o aumento, entre outros. Ele testemunhou, como
pesquisador, todas as manifestações contra e a favor do impeachment organizadas
em São Paulo. Bruno Cava, autor de A multidão foi ao deserto, entre outros
livros, e blogueiro do Quadrado dos Loucos, também é um atento investigador das
ruas, pesquisador de lutas e movimentos urbanos há 11 anos, associado à
Universidade Nômade.
Eles responderam, por
e-mail, a três perguntas propostas por mim. Embora esses quatro interlocutores
estejam próximos do campo das esquerdas, há diferenças consideráveis no seu
modo de compreender esse momento. E há quem considere o conceito de esquerda,
assim como o de direita, superados, insuficientes e redutores. De modos
diferentes, os quatro são observadores atentos de Junho de 2013 – o ponto de
inflexão que não parece ter sido compreendido por protagonistas de ambos os
lados.
A ideia, aqui, não é
construir um terceiro discurso – ou um terceiro lado. Isso também seria
empobrecedor. Não há homogeneidade. E é mais interessante que ela não exista,
que os discursos possam ser múltiplos. Talvez, por isso, também seja difícil –
ou mesmo impossível – nomear esse fora dentro. Ou esse além dos muros.
A transgressão
necessária, nesse momento tão delicado, é atravessar os muros com palavras. Mas
essas palavras têm várias direções.
1) Por que você não
está em nenhum dos lados ou dos polos da chamada "polarização do
país"?
Moysés Pinto Neto -
Não estar em um dos lados não significa não ter posição – sou contrário ao
impeachment por questões jurídicas e políticas. Significa simplesmente não
subscrever as duas principais narrativas. De um lado, a narrativa
oposicionista, que define o PT como uma quadrilha que se apropriou do Estado
para se manter no poder, garantindo sua permanência por meio de fraudes
eleitorais e manobras populistas. De outro, a narrativa governista, que define
o que está ocorrendo como um golpe de Estado travado pelas forças
conservadoras, com vistas a atingir o processo de inclusão social levado a cabo
nos últimos 12 anos. O problema é que essas narrativas estão incompletas.
A oposição desenha o
cenário de modo a transformar o PT em alvo principal e ignora, propositalmente,
a dimensão estrutural e universal que está sendo revelada nos processos de
investigação da Operação Lava Jato. A situação, por sua vez, prende-se a
importantes questões formais, baseadas em instituições jurídicas, mas não
enfrenta o mérito de que o estrutural não elimina a responsabilidade de quem se
envolveu e aprofundou o processo, muitas vezes blindando de forma idolátrica o
partido contra toda e qualquer crítica.
Há tempos vem se
construindo uma crítica ao modelo baseado numa noção de progresso
unidimensional, que mede o sucesso das políticas públicas por meio dos índices
quantitativos de crescimento, se sustenta em alianças com latifundiários,
oligopólios econômicos e no alinhamento político com o "Centrão". A
corrupção não foi um acidente, mas parte de um programa que aceitou como fato
consumado a existência desse complexo oligopolista para promover o crescimento
nacional. Os movimentos sociais de 2013 entenderam perfeitamente esse mecanismo
quando usaram o lema #NAOVAITERCOPA.
Não estar na
polarização significa ampliar narrativas que têm sido reprimidas em nome da
simplificação maniqueísta.
Bruno Torturra –
Enxergar o país sob a lente da polarização já se provou algo pior do que
simplista. É, a essa altura, alucinatório. De certa forma, a polarização é o
exato oposto do que estamos vivendo na política institucional –
escancaradamente promíscua, fisiológica e amalgamada.
Hoje, vejo a
polarização mais como um fenômeno entrópico de comunicação do que político. Ela
se destaca e exerce toda essa força gravitacional em ruas, jornais e timelines
justamente pela dificuldade imensa de leitura de uma paisagem política caótica,
trágica e complexa demais para ser resumida em posts, manchetes ou palavras de
ordem.
Essa complexidade é
uma barreira enorme para novos léxicos, lideranças, símbolos e campos de
identificação emergirem e se tornarem forças relevantes, críticas e
propositivas no debate. É um terreno minado para a assertividade. Mas, à medida
que a crise se aprofunda, crescem também a ansiedade pública e a necessidade de
respostas, de posições firmes. Então os polos – por mais disfuncionais que
sejam – se tornam os únicos aspectos facilmente identificáveis do terreno.
É uma pena, porque
esse teatro esconde a causa que poderia, em um ambiente racional, unir grande
parte dos dois campos e uma massa de desidentificados no caminho: a completa
refundação do sistema de financiamento eleitoral em nome de um mais barato,
público e transparente.
Pablo Ortellado – Essa
polarização política, ao meu ver, tem dois motivos principais. O primeiro é o
aparecimento, no Brasil, do que os americanos chamaram de “guerras culturais”,
que são as disputas geradas pela moralização do debate político. Essa
moralização aparece na proeminência no debate político de temas como casamento
gay, aborto e endurecimento penal, em detrimento de questões tradicionais de
política econômica e social. Além disso, a moralização aparece também no
tratamento moral dado a esses temas clássicos da política econômica e social
que opõe, de um lado, uma moralidade punitiva, associada à direita conservadora
e, de outro, uma moralidade compreensiva, associada à esquerda progressista.
Assim, o Bolsa
Família, por exemplo, não é mais discutido na chave da sua eficácia ou
eficiência no combate à pobreza, mas suscita dois discursos morais
inconciliáveis. Para um lado, ele é um instrumento que premia a indolência, a
incapacidade de poupança e a falta de empreendedorismo. Para o outro, ele é uma
política solidária que mitiga uma injusta pobreza estrutural.
Com a moralização da
política, o debate perde as referências comuns e se torna apenas o agressivo
choque de visões morais de mundo. Essa moralização do debate é reforçada e está
entrelaçada com a rivalidade entre os dois grandes partidos políticos
brasileiros, o PT e o PSDB, que organizam as demais forças políticas. Como
estão bastante organizados e enraizados em diversos setores da sociedade
brasileira, cada um deles tem a capacidade de coordenar um discurso unitário.
Pouco importa se essa orquestração é fruto da adesão espontânea dos partidários
a argumentos e frases de efeito ou se emana como ordem de um centro político. O
resultado é que cada partido tem um discurso pronto, fechado e autorreferente
que é igual em toda a parte: nas redes sociais, nos meios de comunicação e na
conversa cotidiana.
Esses discursos
partidários, pronunciados por muitas pessoas, sempre da mesma forma e em todos
os lugares, sufocam, com sua abundância repetitiva, os discursos independentes
que, pela própria natureza, são singulares e descoordenados. Fugir da
polarização é, portanto, condição para pensar e para agir com autonomia e
independência.
Bruno Cava – Fala-se
em terceira via, mas estou do lado de uma segunda via, em relação a um sistema
político-partidário esgotado, onde as polarizações dos líderes escondem
barganhas, promessas e posicionamentos que, por trás da retórica, não passam da
reposição do mesmo jogo de sempre. Então, estou polarizado contra essa falsa
polarização, e é o que me faz continuar pensando.
Diante do clamor por
mudanças pelo país inteiro, em todos os segmentos, os protagonistas dessa crise
simulam que estão mudando, para que tudo continue como está. Seja essa
simulação na forma da guinada à esquerda, seja na do fim do petismo. A
diferença, em termos de dinâmica, entre as duas, está na capacidade de falar
para fora. O verde-e-amarelo e a pauta anticorrupção são inclusivos e tendem a
funcionar como guarda-chuva para as indignações, ao mesmo tempo que símbolos
partidários não são bem vistos e podem ser vaiados. O vermelho e a invocação de
pertencer a um grupo específico, a esquerda, faz da outra manifestação uma
espécie de prova de coesão, com contornos claros.
Isto talvez explique,
em parte, a diferença quantitativa entre uma e outra: a pessoa indignada, que
não está acostumada a ir a manifestações, tende a ir nas de verde-e-amarelo. Eu
acho isso particularmente irônico, porque, quando gritávamos "Não vai ter
Copa", nos protestos de 2014, vestíamos preto e vermelho. Mas, naquele
período, boa parte da esquerda dizia que não era hora de manifestar, que era
hora de torcer. Ou seja: há apenas dois anos, era imoral *não* vestir
verde-e-amarelo. Agora, essas mesmas pessoas atribuem ao verde-e-amarelo uma
conotação negativa.
O grito antipolítico
ou anticorrupção exprime uma tendência mundial de rejeição do atual sistema
representativo, na sua dimensão política, econômica e ambiental, que não
corresponde às potencialidades de uma democracia hoje possível, mas que é
sistematicamente bloqueada. Atrás do “anti”, do “não”, do repúdio geral à
figura do político, existe um “sim” maior, como vimos nas jornadas de junho de
2013, no Brasil, em Gezi Park, na Turquia, no movimento do 15M na Espanha, nas
revoluções árabes, em todo um ciclo vivido intensamente pelo mundo. É possível
trabalhar com esse sim.
2) Se você não está em
nenhum dos lados, onde você está? Que posição é esta? E como nomeia esse
“lugar” onde você está?
Moysés – Esse lugar
tem tido sua nomeação proibida. Antigamente, chamavam pejorativamente de
"terceira via", agora chamam de "isento". Na realidade, se
"terceira via" se confunde com o liberalismo envergonhado de Tony
Blair e "isento" se confunde com "sem posição", não vejo
como esses termos poderiam ser adequados. Trata-se da tentativa do
"vórtice" bipolar de sugar tudo para seu interior, reduzindo todas as
posições às suas referências.
Esse "lugar"
surge desde Junho de 2013, quando houve oportunidade inédita de enfrentar
velhas oligarquias com novas forças políticas, formadas a partir de uma
transição geracional mergulhada em uma mutação tecnológica e cultural. Ele
parte da falência da democracia representativa em contexto mundial, cuja crise
se expressa pela presença sintomática de movimentos críticos ao sistema (como Espanha
e Grécia), pelo descontentamento popular com questões globais, apropriado pela
extrema-direita (com Le Pen, Donald Trump etc), pelos coletivos
auto-organizados (como Zapatistas, Rojava) e, por fim, com revoltas violentas
difusas nas periferias e com fundamentalismos.
O contexto atual ainda
coloca a questão emergencial do "Antropoceno", a entrada em um
período geológico no qual o fator humano desempenha papel central na
organização da Terra. A continuidade do programa de crescimento econômico
baseado na hiperprodução e no hiperconsumo não faz mais qualquer sentido em um
contexto material em que é necessário reduzir nosso impacto.
Alguns se perguntam se
a própria noção de "esquerda" é útil para pensar esse porvir,
entendendo-a como um marcador identitário que restringe a capacidade de
disseminação das lutas e promove um fechamento "condominial", que
gradualmente se apaixona pelas próprias ideias. E, quanto mais caminha ao
extremo, mais rígida, em um sentido quase militar, se torna a identidade.
Por outro lado, mesmo
se considerarmos a crise da mediação e a crise ecológica como novos termômetros
políticos, que reposicionam a polaridade, é difícil simplesmente negar a
existência de uma diferença que corta ao meio as posições: para onde vão essas
transformações sociais, ecológicas, tecnológicas. A divisão social em dois
grandes grupos, aqueles que são donos de tudo e de todos os direitos e aqueles
que não têm direito algum, reduzidos à condição de "vida nua", parece
ser o fio que corta necessariamente toda visão acerca do futuro, mesmo que
marcada por esses novos termômetros.
Assim, pode até ser
que o significante "esquerda" não diga mais nada sobre o porvir, já
que sua herança humanista e parlamentar não dá conta dos problemas que o
Antropoceno coloca. Do mesmo modo que a linguagem política dos direitos humanos
pode ser insuficiente para compreender o contexto pluricultural que emerge no
cenário globalizado, eliminado o privilégio ocidental de se colocar como a
própria humanidade. Mas é inegável que há uma herança aí a ser apropriada: a
luta por justiça que ultrapassa a noção de mera sobrevivência. A luta por
justiça contra a divisão da sociedade em duas, uma com tudo e outra com nada.
Torturra – Acho que
meu lugar é o da travessia. Impossível de ser posicionado com precisão. Pode
ser um lugar muito desconfortável, mas necessário. Sempre me considerei – e
ainda me considero – alguém de esquerda. Mas acredito realmente que a definição
desse termo está, como todo o resto, em crise. Porque fica muito difícil saber
o que é esquerda quando não sabemos mais onde está o norte. Quando não temos
mais a clareza de que futuro, qual ideia de sociedade e democracia nosso campo
vai oferecer para o século 21.
A forma, estética e
ética das esquerdas do século 20 não dão mais conta. Por isso, nesse momento,
eu acredito que a melhor posição não seja um “lado”, mas uma atitude desarmada,
racional e realista. Abraçar a dúvida. Para, quando possível, ter mais clareza
de léxico, propostas e ação. Para isso recorro às duas bases da minha formação
política. Por um lado, autores iluministas e valores de crítica e autocrítica
permanente. De rever e adaptar minhas opiniões aos fatos, nunca o oposto. E, do
outro lado, voltando a buscar experiências psicodélicas com plantas e
substâncias enteógenas – psicoativos que favorecem uma reconexão entre a
natureza e seus processos. Elas me ajudam muito a compreender o intraduzível. A
enxergar a política como uma propriedade emergente da psique humana. E trazem
um pouco de calma no caos, alguma perspectiva e relativa lucidez nesse momento.
Ortellado – Me coloco
fora da rivalidade dos partidos políticos, colaborando como posso com os
movimentos sociais “autônomos”. Como dizem os zapatistas, busco estar “abaixo e
à esquerda”. À esquerda no espectro político e abaixo (fora) do sistema
partidário.
Acho que há uma
conexão entre as manifestações de junho de 2013 e os protestos pró-impeachment
de 2015 e 2016. Para além de qualquer dúvida, Junho de 2013 resgatou o protesto
de rua como instrumento de pressão política e esse elemento foi incorporado no
repertório de ação política, à direita e à esquerda.
Mas, de maneira mais
profunda, pesquisas de opinião que conduzimos com os manifestantes anti-Dilma, em
2015, mostraram que eles compartilham as demandas centrais dos protestos de
junho de 2013, que podem ser resumidas em: 1) rejeição da representação
política; 2) defesa do sistema de direitos sociais. Ao contrário do que
parecia, os manifestantes anti-Dilma não eram antipetistas seletivos, mas
desconfiavam de todo o sistema político, PT à frente. Além disso, defendiam de
maneira surpreendentemente forte a universalidade, o caráter público e a
gratuidade dos sistemas de educação e saúde.
Minha explicação para
isso é a seguinte: Junho de 2013 despertou uma grande indignação transversal na
sociedade brasileira contra o sistema político e em defesa de direitos sociais,
a partir dos protestos pela redução da tarifa convocados pelo Movimento Passe
Livre (MPL). Essa indignação mais ampla ficou órfã quando o MPL, por questões
próprias do seu modo de fazer política, se recolheu ao seu trabalho de base
voltado para a mobilidade urbana. Sem atores políticos à esquerda que fossem
organizados e desvinculados de partidos políticos, essa indignação foi assumida
como causa pelos novos grupos de direita, que começaram a transformar o impulso
anti-institucional em antipetismo, atribuindo a má qualidade dos serviços
públicos à corrupção. O passo seguinte, no qual trabalham agora, é transformar
a crítica à corrupção numa crítica ao tamanho do Estado, propondo como solução
a desconstrução dos serviços públicos.
Cava – Tenho
discursos, trejeitos e instintos de uma cultura de esquerda. Hoje vivo essa
tradição como uma limitação do meu poder de agir. Me desconecta da alteridade,
me paralisa pelo medo. A multiplicidade de modos de vida no mundo, hoje, não
admite essa dicotomia entre "pessoas de direita" ou "pessoas de
esquerda". É artificial, forçada, e costuma servir apenas para fazer
cordões sanitários entre grupos e redes mais amplos e transversais.
Como falar em esquerda
e direita como estruturante do mundo político depois da Hungria 56 ou da
Primavera de Praga 68? Talvez funcionasse em algum lugar do século 19, mas hoje
existem vários polos que não encaixam bem aí, como direitos das minorias,
ambientalismo, cultura digital, pensamento ameríndio etc.
Mas já sou de uma
geração que não é mais a da fundação do PT, mas do ciclo alterglobalização de
Seattle e Gênova, que tinha no zapatismo uma grande referência, se informava
pelo CMI (Centro de Mídia Independente) e militava pela mundialização das
lutas. Então, já é uma geração em êxodo com relação às formas engessadas que a
esquerda assume, seja no movimento estudantil, nos sindicatos, nos movimentos
sociais.
O ciclo de “ocupas”
brasileiras no período de 2011-12 teve o efeito de demonstrar que se fortalece
uma tendência transformadora que não passa pela esquerda. Ao contrário, seus
símbolos representam elementos indesejados: aparelhamento, velhas lideranças,
estruturas pesadas e centralizadas.
Em 2013, esse
movimento de êxodo se tornou massivo e generalizado: no Rio tivemos lutas pelo
transporte, moradia, anticorrupção nas obras da Copa e nas licitações de linhas
de ônibus, contra a cura gay, campanha “Cadê o Amarildo?”, greves
metropolitanas com professores e garis. Porém, para parte da esquerda, era mais
importante proteger símbolos do que transformar o mundo.
De lá pra cá, ser de
esquerda virou um tipo de estado civil, com cobranças, obrigações, certidões.
Em vez de ficar estático, tento seguir os prolongamentos da tendência que
citei, que hoje aparece de modo espalhado. É um tipo de solidão, pois sem lugar
de conforto, mas que é compartilhada por muitos na solidão mesma, como um bloco
do “nós sozinhos”. Num trocadilho com a música do Los Hermanos, quero dizer com
isso o bloco dos sem representação, dos sem nome, daquele que está sozinho no
deserto, mas encontra outros sozinhos. E sozinhos juntos se faz um povo nômade.
Um deserto que é uma produção: não de solidão, de isolamento, mas de solidão
ativa, recomeço, bando.
3) O que está
acontecendo com o Brasil, visto deste lugar? Quais são os riscos deste momento
histórico? E como sair desse impasse?
Moysés – Estamos nos
tornando um novo país: as várias autoimagens brasileiras estão se dissolvendo.
De baixo para cima, em contraste com o imaginário da mestiçagem, da malandragem
e da cordialidade. E de cima para baixo, com o imaginário do coronelismo, da
liderança paternal e do patrimonialismo. Os conflitos se estabelecem em nível
micro e macro, ao mesmo tempo, colocando a sociedade em estado de
hiperpolitização estressante.
A democracia
implementada desde a Constituição de 1988 transformou o país, com a
estabilidade do Plano Real e a inclusão social do período lulista. Mas a etapa
posterior ainda está por ser escrita.
Contrariando suas
ideias iniciais, o PT cada vez mais se identifica com o imaginário tipicamente
trabalhista. Busca instaurar um Estado de bem-estar social nos moldes do
capitalismo industrial nacionalista, que serviu de base para sua construção
europeia. Mas esse contexto, hoje, com o poder de pressão do mercado
financeiro, a dissolução de fronteiras culturais, a crise migratória e a
universalidade dos problemas ecológicos, não está mais presente.
O grande risco,
inerente a qualquer desconstrução, é que esse processo seja suspenso em nome de
um gesto de unificação forçada. A "antipolítica" que emergiu em 2013,
tanto à direita quanto à esquerda, mas que está presente e visível no mundo
inteiro, pode ser capitalizada de diversas formas, tendo em comum apenas a
rejeição em bloco de todo sistema de mediação.
Deslocando o problema
para a conjuntura, parece nítido que o buraco da "corrupção" não vai
ser tampado apenas com "garantismo" (defesa das garantias individuais
e da legalidade nos processos de persecução criminal). Para que a esquerda se
rearticule, precisará dar uma resposta a isso que não passe apenas por mudanças
legais e mais punitivismo. O próprio punitivismo é uma demanda que envolve a
nostalgia pela coesão social absoluta: sua luta "contra a impunidade"
é uma tentativa de restabelecer laços sociais em estado de tremor, de buscar
reafirmar a lei como elemento unificador.
Talvez o governismo
simplesmente não seja mais capaz de dar essa resposta, dado que está envolvido
até os ossos com a defesa do projeto atual. A reiterada defesa da Odebrecht por
Lula é significativa disso. Mas certamente a esquerda, entendida como
perspectiva de transformação social com justiça, precisará de uma resposta e
mudança estrutural desse cenário e projeto, para que possa se reposicionar
politicamente, despertando aquilo que é essencial ao vínculo com o Outro: a
confiança.
A transformação do
país passa, portanto, por um novo pensamento, um novo programa experimental e
novas formas de organização. Sair do impasse atual da crise das mediações
demanda repensá-las de modo radical: sem dogmas e abrindo mão das velhas
identidades, escapando da polarização que herdamos do século 20 e que já não é
capaz de dar conta da imensa quantidade de problemas que o século 21 passou a
apresentar.
Torturra – Tentando
resumir o impossível, me parece que não apenas o governo, mas o Brasil inteiro
está sofrendo as consequências gravíssimas de um autoengano generalizado. Cada
ator dessa crise – dos cidadãos aos partidos e instituições – está vivendo em
profunda negação da autocrítica e responsabilidades pessoais. E buscando culpas
em agentes no “outro polo”. O "corrupto", o "golpista", o
"indignado seletivo", o "omisso" é sempre o outro.
Isso explica um pouco
da imprevisibilidade e da escalada punitivista no país. E explica o próprio
impeachment. Para mim, a deposição de Dilma não é um golpe, como muitos
preferem chamar. Mas a culminação dessa sanha literalmente expiatória. Que é
liberar a culpa de todo um organismo político e social pela imolação de um
corpo em praça pública. Uma sociedade afogada em contradições, uma imprensa
majoritariamente cínica e um congresso encalacrado em escândalos querem assar a
pizza da Lava Jato usando a presidente como lenha.
O risco, nesse
momento, é altíssimo. E talvez o desenrolar da crise já esteja com o script
definido. Mas, caso o impeachment seja o grande “pacificador”, a
irracionalidade vai sair vitoriosa, confirmada e livre para capitalizar
eleitoralmente. Em nome da unificação nacional, vamos perder a chance de
discutir, pautar e refundar o sistema de financiamento eleitoral. Dado o enorme
vácuo de novas e críveis lideranças, oportunistas e demagogos podem ocupar esse
espaço em muito breve.
Minha tênue esperança,
nesse momento, vem, justamente, de acreditar que o enorme e pouco reconhecido
campo dos desidentificados seja o mais fértil do país. Que essa metástase do
corpo político possa ser capaz de abrir caminho para o aprofundamento da nossa
própria ideia de democracia, para além do voto. Como? Nem me arrisco a ser
objetivo aqui. Mas penso que direitos humanos, transparência de gastos, um
respeito incondicional aos ecossistemas e uma maior permeabilidade do Estado à
participação cidadã devem ser os norteadores de qualquer nova visão política de
país. Por isso, meu único mantra a esse ponto é o seguinte: manter as
perspectivas mais amplas do que as expectativas. É duro, mas hoje prefiro a
vertigem da desidentificação do que o falso refúgio das bandeiras de sempre.
Ortellado – Por um
lado, a questão do impeachment está ofuscando questões mais substantivas,
relativas à perda de direitos sociais, que estão sendo promovidas, com ênfase diferente,
pelos dois grupos políticos em disputa. Por outro lado, um impeachment agora
terá com certeza grandes repercussões no futuro próximo. As pedaladas, que nada
mais são do que uma manobra contábil, são um pretexto ridículo para remover uma
presidente que perdeu popularidade e apoio político no Congresso. Nessa chave,
impedir a presidente agora é um recurso abusivo e perigoso, porque impeachment
não é recall – votação de meio de mandato pela permanência ou não do
mandatário. Ainda que o processo seja legal e institucional, ele banaliza um
instrumento que devia ser utilizado de maneira excepcional. No entanto, se
alguns dos indícios levantados pela Lava Jato se confirmarem – por exemplo, as
acusações feitas pelo senador Delcídio Amaral –, aí sim teremos motivos para um
pedido de impeachment. Mas ainda não é o caso.
Independentemente de
tudo isso, o que estamos vendo agora é um ataque aos direitos sociais. Começou
com a limitação do seguro-desemprego, passou por cortes expressivos nos gastos
sociais e caminha rapidamente para cortes nas aposentadorias. Seja quem for que
ganhe a disputa, provavelmente teremos redução de direitos. Por isso, a questão
mais importante agora é fortalecer os movimentos sociais, principalmente
aqueles que atuam por fora do sistema político. Consolidar os movimentos
sociais que estão fora do modelo petista de fusão entre partido e movimento.
O PT não é um partido
social-democrata tradicional, como o Partido Social-Democrata alemão ou o
Partido Trabalhista inglês. No modelo social-democrata europeu, o partido tenta
controlar e dar orientação aos movimentos, desde fora, oferecendo a eles um
planejamento político de longo prazo. O PT é o contrário disso: é um partido
construído em grande medida pela base, a partir da convergência de quase todos
os movimentos sociais atuantes no final dos anos 1970 e início dos anos 1980.
Isso gerou um modelo de participação e colaboração entre sociedade civil e
Estado que vemos tanto na participação de movimentos na direção do partido,
como em instrumentos institucionais de participação no Estado, como as
conferências, os conselhos e as audiências públicas.
A partir dos anos 1990
e 2000, esse modelo, que se tornou dominante, começa a ser rejeitado pelos
novos movimentos sociais construídos pelos mais jovens. É esse processo de
construção – que vemos no Movimento Passe Livre, no movimento dos estudantes
secundaristas, no novo movimento feminista, nos movimentos contra a violência
policial nas periferias, entre muitos outros – que precisa ser amadurecido,
para inaugurarmos uma nova etapa na esquerda brasileira, na qual a sociedade
civil pressiona o Estado por mais direitos desde fora.
Cava – Gramsci dizia
que crise é quando o velho já morreu e o novo ainda não pôde nascer, intervalo
durante o qual ocorrem as mais diversas expressões mórbidas. O problema é que
nenhuma das posições que está sobre a colina deixa o novo nascer, o que está
levando o país – e o mundo – ao ponto do paroxismo. O maior risco é tirar a
escolha das pessoas. É a chantagem em tom policial de que você tem que escolher
um lado, senão... É preciso desconfiar de qualquer campo de possibilidades em
que você não tenha escolha, e diante disso escolher a escolha.
Quando se coloca que
há poucas escolhas, ou o afunilamento em apenas duas, "tudo" ou
"nada", seria interessante deslocar essa colocação: que tipo de
agência eu – e cada eu é muitos, muitas redes – posso construir assim? Se
enquadrarmos a intensa mobilização social no Brasil de 2016 como uma dicotomia,
será que não cancelamos qualquer possibilidade de agência?
Por exemplo: no dia 18
de março, em São Paulo, onde estive, o PT colocou pra girar toda a sua
estrutura na capital e cidades vizinhas, aglutinou todas as forças sindicais,
das juventudes, dos movimentos sociais, e contou com o reforço das pessoas
ligadas à oposição de esquerda e, sobremaneira, da universidade. O problema é
que, conforme o ato ia evoluindo, ele era sucessivamente verticalizado em
palavras de ordem, até atingir o clímax que foi o discurso do Lula. Toda a
organização se deu de modo arborescente, quase um zigurate, para Lula falar.
Lula sai dali e vai negociar com os caciques do PMDB, como vinha fazendo no ano
passado, com o poder de barganha conferido pelo orçamento do governo.
Foi uma capitalização
política em que os participantes tiveram pouca ou nenhuma agência. Ou pior, se
agenciaram para favorecer não o que queriam, a "guinada à esquerda",
mas a blindagem do sistema político ao único vetor que conseguiu passar pela
brecha de Junho de 2013, a operação Lava Jato – o que é a delícia e o drama
dela, uma operação policial. A abertura das planilhas de obras e campanhas
apenas está comprovando o que já desconfiávamos: como em termos de
financiamento político e compromissos ocultos os principais partidos não
diferem em nada. Nessa crise de esfacelamento, se a Lava Jato está exercendo o
papel de Glasnost de uma governabilidade desenvolvimentista, o desastre
ambiental em Mariana foi o seu Chernobyl.
Nas jornadas de junho
de 2013, os coletivos pelo passe livre questionaram as planilhas do transporte
coletivo municipal, para examinar os negócios e pegar os "pulos do
gato". Além dos obstáculos colocados pela repressão, se deparavam com uma
contabilidade paralela, onde se enroscam os acordões empresariais e
políticos-eleitorais. Hoje, três anos depois, a Lava Jato está escancarando as
caixas pretas da governabilidade, relativas às grandes obras, os contratos
públicos, os projetos urbanos.
Podemos levar adiante
esse questionamento. Essa, aliás, não foi só uma das demandas de Junho, como
também de uma recente mobilização em favor de uma constituinte por reforma
política, centrada no financiamento eleitoral, mas paralisada com a desculpa da
ausência de "correlação de forças". Hoje, essa correlação não mudou
para favorecer as mudanças?
Spinoza falava, sobre
a servidão voluntária, que não se pode enganar o desejo. Você pode frustrar o
interesse – e não o desejo. Seria interessante perguntar então, por qual mecanismo
se é levado a lutar pela própria frustração, pelo próprio fracasso. Daí tantas
leituras "existencialistas" – signo de interiorização de uma crise
onde não se encontra agência – que vão falar em angústia, desespero etc. Claro
que, em 18 de março, ouvi inúmeros relatos sobre isso, existiam margens, linhas
de fuga, grupos deslocados com relação à verticalização. Dentro da massa
vermelha havia matilhas.
Mas isso passa
justamente por não se deixar subjetivar por um lado como contraposição ao
outro, e buscar a terceira margem – a segunda via, em termos de potência de
agir. Isso não significa não agir ou não decidir. Eu só acredito em refugiar-se
quando tem um sentido tático, como quem se joga no chão pra escapar de uma
bomba, mas logo se levanta e faz alguma coisa.
É preciso agir sim,
falar, estar nas ruas, debater nas redes, enxergar linhas minoritárias em meio
aos macroblocos que cobram coesão. Existe uma energia grande à solta, buscando
emergir desde as jornadas de junho de 2013, que a polarização partidária vem
violentando de maneira ortopédica. Aconteceu algo semelhante na Argentina de
2001, que desembocou no movimento de panelaços e piqueteiros com o grito que se
vayan todos. Sem respostas à altura da parte do sistema
político-representativo, a indignação vai fazer um strike que nem no boliche.
A crise é um momento
em que temos a oportunidade de viver intensamente o nosso tempo histórico. Em
que o futuro é uma incógnita, em que podemos portanto contribuir, num sentido
ou em outro, para materializar esse futuro aqui e agora. Querer sair do impasse
já é, em certa medida, negá-lo. Como se existisse uma saída à mão, um
"abre-te sésamo". A esquerda, quando fala em "saída pela
esquerda", lembra o Barão de Munchhausen: para sair do atoleiro, resolveu
puxar-se pelos próprios cabelos. Vai arrancar alguns, mas não vai sair.
Eu não tenho a
resposta do "como fazer" em sentido estrito, ela não vai sair de uma
fala ou análise individual. Na verdade, ela só pode ser desdobrada de um campo
de relações, redes e agenciamentos de que cada um já participa, mesmo que isto
signifique divorciar-se de alguns deles, porque crises também são momentos de
reconfiguração. Junho de 2013 foi vivido assim por bastante gente: como tempo
que urge.
Temos que assumir o
impasse como potência. Não tem como sair, tem que entrar nele.
Transcrito de “El País”
– Brasil
*
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não
ficção “Coluna Prestes - o Avesso da Lenda”, “A Vida Que Ninguém vê”, “O Olho
da Rua”, “A Menina Quebrada”, “Meus Desacontecimentos”, e do romance “Uma Duas”.
Site: desacontecimentos.com
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