Heinrich Heine relata o ânimo dos parisienses
face ao cólera
O poeta romântico alemão, Heinrich Heine (cujo nome completo
era Christian Johan Heinrich Heine), foi dos poucos escritores a relatarem
episódios da epidemia de cólera que afetou Paris, cujo início ocorreu em 1830 e
que se estendeu até meados de 1832. Em apenas seis meses, a doença causou a
morte de pelo menos 19 mil pessoas na cidade. Heine não o fez, todavia, em
algum poema. Fê-lo em matéria para o jornal liberal germânico, Allgemeine
Zeitung, de Augsburg, do qual era correspondente na Cidade Luz. Exilado de seu
país, por suas idéias socialistas, o poeta assumiu essa função em 1831, no auge
da doença e fez um relato sumamente dramático e realista sobre o ânimo da população,
sobretudo da camada mais humilde, que não escondia sua revolta por se sentir
abandonada pelas autoridades. Sua descrição difere muito da feita pelo
historiador francês, Anais Bazin, que deu a entender que a epidemia não alterou
em nada (ou mudou muito pouco) a rotina dos parisienses.
Numa de suas reportagens, Heine escreveu, à certa altura: “(...)
O povo grunhia amargamente, ao ver os ricos fugindo, rodeados de uma armada de
médicos e de farmacêuticos, escapando para regiões mais sadias (...)”. Em outro
texto para seu jornal, o poeta-jornalista trata de alguns linchamentos promovidos
por uma turba raivosa e descontrolada, num relato de um realismo chocante, nu e
cru, pode-se dizer. Escreve, à certa altura: “(...) Algumas vozes, trêmulas de
raiva, me informaram sobre o enforcamento de um indivíduo acusado de ser
envenenador. Uns diziam que se tratava de um carlista e que haviam sido
encontrados, em um de seus bolsos, documentos que o identificavam como tal.
Outros garantiam que era um padre e que esse miserável era capaz de qualquer
coisa (...)”.
Apenas para que o leitor não fique no ar, informo que os “carlistas”,
citados por Heinrich Heine, eram os adeptos do Rei Carlos X, deposto depois do
levante popular de 27, 28 e 29 de julho de 1830, episódio conhecido como “Os
três dias gloriosos”, forçando o último representante da dinastia Bourbon a
partir para o exílio. Mas, voltemos à descrição do correspondente alemão sobre
os linchamentos que mencionou: “(...) Na rua de Vaugirard, onde massacraram
dois homens que portavam um pó branco, vi um dos desgraçados no momento em que
agonizava. Vi algumas velhas tirarem seus tamancos para o golpearem na cabeça
até que ele morresse. O infeliz estava completamente nu e coberto de sangue e
de feridas. Não apenas lhe arrancaram as roupas, mas também os cabelos, os
lábios e o nariz (...)”. Como se vê, cena horripilante de ódio e de selvageria.
Mas a crueldade do populacho não parou por aí. Heine relata:
“(...) Em seguida, veio um homem asqueroso, que amarrou uma corda nos pés do
cadáver e o arrastou pelas ruas, gritando: ‘aqui está o cólera!!!’. Uma mulher,
extraordinariamente bonita, com o peito descoberto e as mãos sujas de sangue,
que se encontrava nesse lugar, deu um forte tapa no cadáver, quando este passou
perto dela. Ao ver-me, sorriu. E pediu-me que eu lhe pagasse um tributo à sua
doce indústria do sexo, para que ela pudesse comprar um vestido de luto, já que
sua mãe acabara de morrer poucas horas antes. Ela achava que a morte fora em conseqüência
do pó branco que lhe deram, que disseram ser remédio contra o cólera, mas que
ela achava que era veneno (...)”.
Como se vê, o clima em Paris permanecia tenso e violento,
mas não somente por causa da agitação política, como Anais Bazin dera a entender
em seu relato sobre a epidemia, mas, sobretudo, pela forma com que parcela
considerável dos parisienses era tratada. Essa gente desconfiava de tudo e de
todos e exigia providências das autoridades para debelar a doença. E ai de quem
lhes caísse nas mãos, não importa se carlistas ou anti-carlistas. As pessoas
apavoradas e descontroladas não poupavam ninguém, médicos, farmacêuticos ou
sacerdotes. As tentativas de tratamento eram interpretadas como ações que
visavam envenenar os pobres para, dessa forma, pôr fim à epidemia de cólera. Claro
que isso não passava de paranóia. Mas quem poderia conter aquela turba
desesperada e enfurecida e levá-la a pensar com um mínimo de racionalidade?
Heine, como se vê, revelou, nessa série de reportagens,
outra faceta do seu enorme, inegável talento: a do jornalista meticuloso,
observador e detalhista. Como poeta, nem é preciso enfatizar sua grandeza.
Afinal, influenciou centenas, milhares ou sabe-se lá quantos escritores. de boa
parte do mundo. Sabe-se, por exemplo, que o poeta abolicionista Castro Alves
inspirou-se no poema “Navio negreiro”, do alemão – em que este retrata a
condição dos prisioneiros de uma embarcação repleta de escravos trazidos da
África que aportou no Rio de Janeiro – para escrever seus vibrantes e perenes versos
com o mesmo título. Ele foi admirado por gente do calibre de Machado de Assis,
de Gonçalves Dias, de Raul Pompéia, de Alphonsus de Guimaraens, de Fagundes
Varela, de Manuel Bandeira e de André Valias, entre tantos e tantos outros,
muitos dos quais traduziram sua magnífica obra poética para o português. Por tudo
isso, Heinrich Heine dispensa apresentações para os amantes da boa Literatura,
por conhecê-lo de sobejo e reverenciá-lo como “imortal”, da forma como ele
merece.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
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