sexta-feira, 22 de abril de 2016

Gentil pátria amada


* Por Robledo Morais


Parei o carro a uns cem metros da grande cerca de arame. Abri a porta do passageiro e, vagarosamente ela apeou, andando a passos lentos. Seus oitenta anos impediam-na de andar depressa, mas o detalhe pouco se lhe dava. Queria chegar ao lugar onde viveu sua infância como sempre chegara: a pé. Sentindo-a cansada, sugeri uma “parada técnica” à sombra de uma esguia farinheira. Esteira colorida no chão e nos sentamos para conversar.

Eu a observava. Tinha no rosto a expressão de uma tarde de sol ameno: refulgente e acolhedora. Conversamos, dentre outras, sobre coisas de sua infância. “Se eu soubesse escrever faria um livro”, murmurou. O silêncio morno e o olhar ansioso me fizeram levantá-la num abraço. Sorriu! Voltamos a andar, agora um pouco mais depressa. Súbito parou. “A casa era aqui, não existe mais, vamos voltar”, e me apontou a terra transformada em espesso canavial. A luz amarelada do sol iluminou o seu rosto umedecido de lágrimas. Voltamos ao carro. Quando tentei partir, me obstou: “Não ande ainda, quero contar-lhe umas coisas”. E, sonhadora: “Recordo a minha infância, quando aqui moravam as famílias dos meus pais e tios. Éramos uma cooperativa doméstica.

Quando cheguei à idade escolar, trocamos o sítio pela cidade. Meu pai era agricultor e arriscava uns cortes de cabelos. Instalou-nos numa pequena casa e, para sobreviver, tornou-se barbeiro profissional. Minha mãe, para ajudar na manutenção do lar, costurava calças “de homem” para um comerciante. Matriculada numa escola pública, passei ali dias dos mais felizes de minha infância.

Nossa professora era bonita e inteligente, e, por acréscimo, sábia e bondosa. Ensinou-nos a ler e a raciocinar. Sim, a raciocinar! Recomendava-nos o estudo, para nos tornarmos cultas e usufruir as alegrias do saber. Hoje percebo que a maioria das pessoas só pensa em espertezas e vantagens. Dão as costas para a cultura e a honestidade. É o vaudeville da malandragem! Aquela professora, embora vivêssemos em uma vila do Interior, incentivava-nos a ler, transportando-nos para lugares longínquos!

Os livros, sem sairmos de casa, permitiam-nos visualizar a neve, os grandes rios e mares de gelo; as históricas e suntuosas catedrais das metrópoles europeias; as obras de arte da cultura greco-romana e outras fantásticas viagens de nossa juvenil imaginação. Nós, a ouvi-la embevecidas, quando se referia à São Paulo como a elegante e charmosa terra da garoa, de uma garoa mansa, acolhedora, que embalava os povos do mundo que ali habitavam!

O Rio de Janeiro, ah, o Rio das belezas naturais, que ela chamava de Princesinha do Mar, contando-nos dos mistérios do Atlântico e do suave balançar de suas ondas! Um suspiro, e continuou: À Pátria Amada, louvávamos com seus hinos. Na sua data máxima - da Independência - acordávamos ansiosas para o desfile escolar em sua homenagem. Não vejo mais isso.

Perdemos os valores cívicos? Só se pensa em faturar; apropriar-se do dinheiro público; mentir para o povo, enquanto a Pátria agoniza nas enchentes e vazamentos de milhões de toneladas de lama que destruíram a fauna e a flora mineira. E o que dizer dos desmatamentos, das invasões de terras e da odiosa espera de doentes em imundos corredores de hospitais do SUS?! Alguém socorrerá a gentil Pátria amada?”. Outro suspiro, agora mais profundo. Guardei um solidário silêncio e fechei a porta do carro. Apertou-me o peito aquele momento de solidão a dois, em que ela, desnudando sua alma, deixou escorrer sem avareza o amor que a inundava.

Benditas confidências que me fizeram entender que o amor nunca finda, tal a profusão na alma daquela mulher, a contagiar a minha! Ao fitá-la, já com o carro em movimento, notei em sua face a luminosidade do amor... Desses amores que nos fazem perder a noção do tempo!

* Juiz de Direito aposentado


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