Leituras
peripatéticas
* Por Ronaldo
Bressane
“Nós, poetas, passamos esse piscar de
olhos de tempo que nos é dado até desaparecermos nas trevas eternas criando
poemas, sem saber ao certo a maneira como devemos escrevê-los, nem saber bem o
que escrevemos. (…) O inconsciente profundo do poeta contém outras exigências. O
poeta sempre visa ao crime perfeito. Mas o que significa afinal o crime perfeito? Obviamente refere-se
a criar uma obra de impossível interpretação. (…) Quando leio um poema, só há
dois tipos de emoção que recebo: ‘Nossa, como é lindo!’ ou ‘Que poema
horrível!’. Não há outras, absolutamente. (…) Escrever poesia é,
de fato, algo patológico. Isso não significa, no entanto, que todo doente possa
se tornar um poeta. (…) Eu ensino poesia numa escola de
poesia. Sinto enorme estranheza ao afirmar que ‘ensino poesia numa escola de
poesia’. A sensação é idêntica ao de um mensageiro do Hotel Imperial em Tóquio,
segurando uma bandeja com uma cerveja gelada e procurando manter sua postura
ereta enquanto contempla Katharine Ross a seu lado lavando cuidadosamente o
interior da vagina com um chuveirinho portátil. (…) Aqueles que
escrevem imaginativamente devem estar preparados para enfrentar o pelotão de
fuzilamento. (…) Depositei a caneta sobre a mesa, me levantei
da cadeira e bocejei. Já não há nada mais a escrever. Finalmente consegui
alcançar o momento presente. Nunca me senti tão bem como agora. Eu fui
gangster. Nunca fui poeta”.
Genichiro Takahashi, Sayonara,
Gangsters
“Se ao menos Alexis lesse… Mas essa
criatura era tão drástica nisso quanto o grande presidente Reagan, que em sua
longa vida não leu um único livro. Essa pureza incontaminada pela letra
impressa, aliás, era o que eu mais gostava no meu menino. Em matéria de livros,
bastam os que eu li!, e olhem para mim, observem-me. (…) A trama da minha vida
é a de um livro absurdo em que o que deveria vir primeiro vem depois. É que
esse livro, eu não o escrevi, já estava escrito: simplesmente fui cumprindo-o
página por página, sem decidir. Sonho em escrever pelo menos a última, com um
tiro, com minha própria mão, mas sonhos são sonhos e às vezes nem isso. (…) Aqui
a vida humana não vale nada. E por que haveria de valer? Se somos cinco
bilhões, a caminho de seis… Imprima-os em papel-moeda e vai ver se não se
desvalorizam. Quando há uns cinco – digamos seis – com nove zeros à direita, a
pessoa é um zero à esquerda. (…)
A fugacidade da vida humana não me inquieta; me inquieta a fugacidade da morte:
essa pressa de esquecer, que existe aqui. O morto mais importante é obscurecido
pelo próximo jogo de futebol. (…) Se o país tem boas coisas? Mas claro, o bom é
que aqui ninguém morre de tédio. A gente vai de buraco em buraco, se esquivando
do assaltante e do governo. Companheiro, amigo e conterrâneo: não existe ave mais
bonita que o urubu, nem de mais tradição; é o abutre do espanhol milenário, o vultur latino. Essas
avezinhas têm a capacidade de transmutar a carniça humana em espírito voador.
Melhores pilotos não há, nem os do narcotráfico. Olhem para eles planando no
céu de Medellín! (…) ‘Gostaria de terminar assim’, disse a Alexis, ‘comido por
essas aves para depois sair voando.’ (…) Desde o morro do Pán de Azúcar até o
Picacho, os urubus, com suas penas negras, com suas almas limpas, voam sobre o
vale, e são, do jeito que andam as coisas, a melhor prova que tenho da
existência de Deus”.
Fernando Vallejo, A virgem dos
sicários
“E ela respondeu: - ‘Grude seus lábios
na carne. É simples isso. Descanse na fúria. Sim! Descanse na fúria. Quando eu
gosto das palavras eu as repito um montão de vezes ou as esqueço para ficar com
saudade delas. Deixe eu beijar o teu ombro, a parte queimada do teu ombro, a
parte que eu e e brasa queimaram no teu braço. (…) Ele disse com os olhos
fechados: - ‘Onde vai parar tudo isso? Serei perseguido, maltratado e este
negócio de dizer que gosto de ser maltratado e perseguido é antigo, liso,
superficial. Eu agradeço à prosa porque ela deixa a gente dizer um montão de
coisas. Imagine se eu falasse em poesia! A poesia só é
grande se existe no meio da prosa. (…) Eu também já fui
idealista. Todo aquele que pensa já foi idealista porque no começo todos são
inocentes: poetas, crianças. (…) Estava tudo destruído e é maravilhoso a gente
contemplar algo destruído. (…) Ele estava em pé e tinha um lenço preto no
pescoço e na mão direita tinha uma metralhadora suja e preta. Ele ergueu os
braços e gritou: - ‘Caos! Caos! Agora és tu quem manda em tudo’”.
Jorge Mautner, Deus da chuva e
da morte
* Ronaldo
Bressane é escritor (Céu de Lúcifer) e redator-chefe da revista Trip (www.trip.com.br); seu blog é o Impostor
(impostor.wordpress.com).
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