sábado, 16 de abril de 2016

Antonio Conselheiro

* Por Dantas Barreto


Toda a população baiana compreendida nos limites da estrada de ferro que une o litoral à cidade do Juazeiro, no alto sertão, e os Estados de Pernambuco e Sergipe, estava seriamente apreensiva pela gente de todas as condições que se encontravam nos muros de Canudos, para formarem uma existência a seu modo, sem obrigações com as autoridades constituídas daquela região brasileira e sem outra dependência que não fosse a do supremo árbitro da sua sorte, o legendário Antônio Conselheiro. (1)

Um drama de íntima urdidura, dos que se criam na veemência de sentimentos estragados e cujo desfecho produz a estupefação mais viva na vítima que atinge, fez desse homem laborioso e austero um grande desgraçado, para quem desde logo morreram as alegrias da vida.

Traído cruelmente pela indigna esposa, que adorava com todo o entusiasmo do seu coração abrasado, cedeu ao peso do desastre, sucumbiu à injúria esmagadora, e nem sequer buscou na vingança imediata um desafogo a tamanha desventura!

E desde que se apercebeu de semelhante catástrofe, e desde que a fatalidade arremessara-lhe as faces o sopro frio do desprezo, a gargalhada cáustica de quantos o conheceram no pobre meio onde se encontrara feliz até esse dia sinistro, o mísero fugiu de todos, isolou-se do mundo, não como os antigos monges, no silêncio dos claustros misteriosos, nos medievos recolhimentos em que se depuravam os grandes crimes e os grandes pecados, mas pelos recantos escusos, pelos silvados intérminos das charnecas abrasadas, tendo como sócios do seu errar incessante os animais sanguinários das florestas virgens e as aves medrosas que, ao vê-lo no assombro do seu aspecto desolado, batiam as asas de plumagens leves e voavam para muito longe, espavoridas, até se ocultarem nas franças dos arvoredos seculares. E quanto mais se recordava dos avoengos que a tradição envolvia de façanhas temerárias, sempre vitoriosos nas lutas em que se empenhavam com adversários rancorosos dessas paragens queridas, mais se abismava na solidão e na mágoa, como se fosse um assassino execrável, como se expiasse um crime hediondo!

Depois, atordoado com a quietação do deserto, esmagado pela brutalidade da natureza bravia, salvando montanhas fragosas para lançar-se nos áridos plainos do norte, bebendo como o jaguar as águas estagnadas da terra inculta, pedindo esmolas para não morrer de fome, dormindo pelas cavernas abandonadas dos tigres carniceiros, transferiu-se do Ceará para o sertão da Bahia e aí peregrinou de aldeia em vila, fazendo-se notar em pontos diferentes, quase ao mesmo tempo; anoitecendo em Cumbe e amanhecendo em Monte Santo ou Massacará, calculadamente, com enigmático parecer, no seu invólucro de humilde religioso, para chamar a atenção dos sertanejos impressionáveis, em cujo espírito era preciso insinuar-se até o seu domínio completo. E foi assim que, depois de aturado e longo trabalho doutrinário, arregimentou uma clientela à sua feição, intransigente e disciplinada como os sectários ortodoxos de todas as religiões mais ou menos sistematizadas. E uma vez convencido do seu triunfo sobre as legiões de fanáticos ao serviço da sua causa dominadora, sentiu-se aparelhado para a luta; encastelou-se nas muralhas e nos contrafortes de Canudos e, de armas ao ombro, não duvidou mais da sua ascendência territorial no Estado.

Avisado desse perigo latente, o governo da Bahia, apesar das veleidades de um poder militar que de fato não possuía, pediu a intervenção do governo federal, que mandou a Canudos duas diligências reforçadas, a fim de chamar à ordem os elementos subversivos do Conselheiro, mas nenhum desses contingentes logrou chegar à praça rebelde, cujos defensores, em vez de se amedrontarem, iam ao encontro dos adversários, fora, nos desfiladeiros estreitos, e aí travavam combate, fazendo-os retroceder com as fileiras vazias de algumas dezenas de soldados, por mortes e ferimentos.

A última dessas partidas compunha-se de uns quinhentos homens, com duas bocas de fogo, tudo sob o comando de um inteligente e cauteloso oficial superior, de modo que o seu insucesso deu muito que falar na imprensa do norte central, onde tudo se alarmara com justificada razão. E só então foi que o governo da República, sentindo devidamente o mal-estar da população baiana, viu-se na contingência de reagir com elementos poderosos, para sufocar a anarquia de Canudos, determinando a partida imediata de uma expedição regular sobre o território ameaçado, nos longínquos sertões do heroico Estado.

(1)Antonio Vicente Mendes Maciel procedia de uma antiga família de Quixeramobim, no Estado do Ceará, famosa aliás pelo valor com que enfrentara, em época remota, as coortes de adversários poderosos que pretendiam exterminá-la.

Acidentes de guerra (operações de Canudos), 1905.


* Marechal-de-exército, historiador militar, jornalista, romancista e teatrólogo, membro da Academia Brasileira de Letras. 

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