Notório charlatão que tratava do que
não conhecia
O mais elementar e lógico dos princípios da Medicina é o de
que não se pode tratar nenhuma doença sem que se saiba, e sem sombra de
dúvidas, qual é a sua causa. Um diagnóstico incorreto resulta, invariavelmente,
em tratamento inadequado, quando não fatal. A administração de medicamentos inadequados,
dependendo de quais sejam, pode não só não ter qualquer eficácia contra a
enfermidade que se quer tratar, como, até, envenenar o paciente, levando-o à
morte. Embora ache inadequada a conclusão do dramaturgo francês Moliére (por
sua generalização) quando afirmou que “quase todos os homens morrem de seus
remédios, não de suas doenças”, neste caso específico que citei entendo que ele
está coberto de razão.
É inútil tratar-se de sintomas, se não se conhecer a causa
de determinada doença. Em alguns casos, pode-se, até mesmo, aliviar
temporariamente o sofrimento do doente. Pode-se reduzir, por exemplo, sua febre.
Ou é possível aliviar por algum tempo suas dores, enquanto durar o efeito do
medicamento. Mas se não for atacado aquilo que causou a enfermidade, os
sintomas, certamente, voltam a se manifestar e com maior intensidade do que
antes. Não estou informando nenhuma novidade. Trata-se do elementar do elementar,
do que até o leigo dos leigos é capaz de saber.
Até 1894, este era o principal e intransponível obstáculo
para tratar da peste bubônica e impedir que um caso isolado logo se
transformasse numa epidemia e que se alastrasse ao ponto de se tornar em
incontrolável pandemia. Não se sabia (e sequer se desconfiava) qual era a causa
da doença. Por conseqüência, os tratamentos eram todos empíricos, na base de
tentativas e erros, e os resultados eram, invariavelmente, fatais. Ademais, a
Medicina, até por volta do século XVI, sequer merecia essa designação. Na
imensa maioria dos lugares era praticada por meros curiosos, quando não por
rematados charlatães. Até não muito, era exercida, sobretudo, por estranho que
pareça, por “barbeiros”, desses que sabem cortar os cabelos, mas não sabem nada
mais, além disso.
Ocorre que a “terapia” para um sem número de doenças
consistia em sangrias, ou seja, em cortar determinadas veias ou artérias, para
que o paciente sangrasse e, assim, eliminasse os “humores” aos quais as doenças
eram atribuídas. Claro que isso não funcionava. Mas...Um desses “especialistas”
no tratamento da peste bubônica, que viveu entre os séculos XV e XVI (nasceu em
1427 e morreu em 1513) foi o alemão Hans Folz. É estranho o fato de haver
adquirido prestígio como “médico” (que não era, mas era considerado como tal).
Pelos registros que se têm dele, era mesmo um doente (posto que de espírito) e
não alguém habilitado a tratar de qualquer doença.
E por que afirmo isso? Porque Hans Folz passou para a
história como a figura máxima do anti-semitismo do seu tempo, na Alemanha. Era,
pois, um sujeito cruel, preconceituoso e implacável na perseguição aos judeus.
Tinha, por consequência, uma das piores doenças que afetam os seres humanos: o
preconceito. Eu não deveria sequer resgatar essa hedionda figura. Faço-o,
todavia, para mostrar como (e por quem) a peste bubônica era tratada até 1894,
quando a bactéria que a causa, a “Yersinia pestis”, foi descoberta e isolada.
Hans Folz, além de inimigo implacável e declarado dos
judeus, era barbeiro que, nas horas vagas, ganhava um dinheirinho extra como
cantor, em festas promovidas em casas de nobres. Achava-se, porém, especialista
em Medicina e tinha reputação como tal. Legou à posteridade obras de vários
assuntos (como soem fazer os charlatães, que costumam posar de oniscientes,
quando em verdade não conhecem nada de nada). Entre sua produção, há centenas
de partituras de canções populares alemãs, livros sobre mobiliário e de história
e... um curto tratado, escrito em versos (vejam só) detalhando o tratamento dos
bubões característicos da peste bubônica.
Quantos pacientes foram curados pelo método que propôs? Não
há registro. Suponho que nenhum. Até porque, caso tivesse curado alguém, seu nome
entraria para a história da Medicina como benemérito, não é mesmo? Mas... Até
em círculos médicos – e já nem digo da Europa e muito menos do mundo, mas
apenas da Alemanha – o nome de Hans Folz é absolutamente desconhecido.
Para não deixar a informação incompleta, cito o nome do tal
tratado que publicou, de como tratar bubões, mas no original, em alemão (idioma
do qual, por sinal, não entendo bulhufas): “In diesem büechel und Tractetl. ist
beschriben ain seer güt nützlich und cöstlich Regiment und Ertzney wider die
Pestilentz und andere Pestilentzische fieber als Preün und dergleich”, publicado
em 1482. Desconfio que o título do seu li8vro é mais extenso do que seu
conteúdo. Vá se saber!!!! Pobres dos
pacientes que caíram nas mãos deste charlatão (e de tantos outros, como ele,
que ganhavam dinheiro às custas da desgraça alheia). Dá para se compreender,
portanto, por que a peste bubônica fez tantas vítimas, e por tanto tempo,
chegando quase a eliminar a espécie humana do continente europeu, em uma de
suas tantas pandemias devastadoras.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Gostei da sua repulsa em resgatar o tal barbeiro.
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