As teorias de Bedford
* Por
Cláudio de Souza
Acabaram-se as aulas.
Rara era a análise que ainda se fazia. Eu continuava a ir diariamente, ao
laboratório.
Trazia um livro,
punha-me a lê-lo. Ou enchia as páginas de um caderno com anotações relativas a
meu professor de química.
Bedford veio certa
tarde ao laboratório, agradeceu-me a dedicação e dispensou-me a assistência,
lamentando nada poder oferecer-me.
Conservaria, apenas, o
rapaz que lhe estava fazendo, ao mesmo tempo, o serviço de recados. (Os recados
eram pedidos de dinheiro a uns e a outros. A mim não mo pedira ainda, talvez
por acanhamento.)
- Se quiser vir prosear, é com prazer.
A fórmula era de
simples polidez, porque ele passava os dias ao lado de Mariana.
Continuei a frequentar
o laboratório, entretanto. Por que, se nada havia ali que fazer?
É o que só agora
compreendo, ao escrever estas notas.
Era o eflúvio
imponderável, a emanação fatal daquela carne lúbrica de mulher que se ia
apoderando de mim... Como vim a sentir-lhe o doce e cruel apelo!...
Certa tarde, ao sair
de um livreiro, se me deparou o Nunes, que havia muito não encontrava. Acabava
de doutorar-se em Medicina. Arrastou-me para um café sonolento e vazio.
Contou-me as peripécias da defesa de tese, suas esperanças, a alegria de se
ver, enfim, livre e senhor de si. Ouvia-o distraído. Entraram, sucessivamente,
duas mulheres, e tomaram assento, olhando-nos com insistência. Uma era
rubicunda e grosseira. A outra, ruiva e seca, tinha a pele picada pela varíola,
cujas cicatrizes lhe davam o aspecto da fruta-de-conde. A imaginação povoada
pelas sacerdotisas de Afrodite, mirei-as com repugnância.
Queres ouvir-me ou
não? - disse-me o Nunes, que logo acrescentou, ao ver para onde me iam os
olhos: - A ruiva é graciosa, mas a gorducha só como domingo de Páscoa após
alguma quaresma severa.
Repliquei-lhe que eram
nojentas. Reproduzi-lhe o quadro que Bedford me fizera entrever.
- Mas isso tudo é
romance, amigo. Temos hoje muito melhor. Mil e quatrocentas hetairas em
Alexandria... Que é isso? Vichy, segundo acabo de ler, pequena cidade de águas
para o estômago (imagine se fosse para outro órgão) tem três mil cortesãs
inscritas, afora as que se não inscrevem... por pudor. Paris tem quatro milhões
de habitantes e mais de um milhão de “livres-amorosas” como você liricamente
lhes chama. E Londres? E Berlim? É verdade que no capitulo amor nada
descobrimos de novo, nem um vício a mais. Mas se os antigos nos pudessem
visitar, que pesar lhes causaria não terem nascido hoje?
E procurou
dissuadir-me das ilusões “do acne, das espinhas românticas dos adolescentes”.
De nada me valeram,
porém, tais discursos. Bedford envenenara-me com suas lascivas evocações. No
dia seguinte, como ele aparecesse no laboratório, não lhe escondi a impressão
que elas me haviam causado.
Bedford sorriu. Uma só
narrativa bastara para me interessar, e, entretanto, meses, anos a seguir eram
necessários para que um discípulo ganhasse amor a outros estudos. Vitória da
natureza contra o artificialismo, do instinto contra o raciocínio derrotista,
porque o amor é o princípio, o meio, o fim de nossa vida animal, - disse-me
ele. E a vida animal é a única que se realiza na alegria, na felicidade. O mais
é tortura de raciocínio sem fim e sem esperança, de preconceitos morais que são
verdadeiras perversões, verdadeiros crimes contra a natureza, de intrigas, de
orgulhos, de ambições de honras que, tudo somado, nada valem. E Bedford
inflamava-se:
- Apregoam a
civilização como a vitória da moral contra a natureza. Que fizemos nós de
maior, de mais alto, de mais glorioso do que os gregos e os romanos? A Grécia
conseguiu chegar ao supremo grau do aperfeiçoamento intelectual. Seus artistas,
seus homens de ciência, seus filósofos, seus retores, seus poetas, seus
escritores, seus escultores, seus pintores, seus matemáticos têm ainda hoje
fama celebrada pelas mais adiantadas civilizações. A Hélade sagrada ainda é o
coração imortal da fantasia, da arte, iluminura das melhores páginas de
concepção humana. E entre seus grandes artistas, como entre seus bravos
guerreiros, o amor é irradiação sempre clara da natureza livre que a Acrópole
consagra e diviniza.
À minha puberdade, ao
meu erotismo de adolescente, Bedford parecia irrespondível de genialidade.
Ele inflamou-se, como
sempre que desenvolvia teorias sexuais.
Falou-me de Roma,
cotejou-lhe a luxúria, veio pela Idade Média, entrou pela moderna, e provou,
provou exuberantemente - ao menos a mim me parecia isto - que a cultura e a
civilização se acompanham da emancipação dos instintos naturais do amor.
- Os preconceitos, as
peias ao ato natural do amor, que é infinitamente belo, colocam o racional
abaixo do irracional, pois este, felizmente para ele, nunca poderá construir
filosofias imorais que vão de encontro às sábias leis da natureza. Digo mais:
colocam o homem abaixo da percepção vital dos próprios vegetais, que se cruzam
livremente na execução perfeita das leis naturais! - bradou Bedford. Qual foi a
primeira página de moral religiosa? A folha de parra. O suficiente para
esconder, apenas, o que se sabe. Ora, esse primeiro princípio de moral foi o da
hipocrisia, porque é evidente que, tanto o homem quanto a mulher, antes e
depois de haverem pecado, sabiam o que estava por baixo da folha. Fingiam desde
então ignorar o que desejavam pela força polar, pela força vital de suas
células, como os outros animais. Depois a folha de parra cresceu. Cobriu o
umbigo, subiu aos seios, desceu pelas pernas, com exclamações de espanto de
todas as partes do corpo, estranhas ao ato sexual. E a hipocrisia é tão
evidente que deixaram a descoberto a boca, paraíso de volúpia, e as mãos,
mensageiras de carícias e armas da violência e do estupro... As civilizações modernas
estão a alargar os decotes e a encurtar as saias da moral, como rasgam largas
avenidas e derribam os pardieiros. Porque a vida, amigo, é o amor, é o ato de
perpetuação da espécie.
Sua fisionomia tomou
aspecto de ironia piedosa:
- Olhe para o ar, meu
amigo, para as nuvens de ouro de pólen que correm o espaço. Veja o rio que
deflui límpido, feliz, sereno. Se lhe opõem obstáculo, as águas turvam-se,
encrespam-se, encachoeiram-se. Deixa de ser o rio feliz e sereno para ser a
raiva e o tumulto. Assim, o amor. Por que, então, por qual maldade feroz
transformar a doce e linda melodia na tragédia dos vícios e dos crimes? Eis a
obra imoral da hipocrisia de nossa moral.
Quando vim para a rua
após aquela aula, dançava-me diante dos olhos toda a história erótica da
espécie. Era dia esplendoroso de sol. Via no espaço a marcha triunfal do pólen,
a procissão maravilhosa de fascinantes formas femininas, de reflexos, de
olhares que cegavam... Havia um parque em frente à casa de Bedford. O perfume
das magnólias era vivo, capitoso, morno, e parecia exalar-se dos corpos nus
daquela feminilidade esparsa, a bailar na luz... Formas vegetais e formas
animais, as primeiras desabrochavam em flores, as segundas em sorrisos claros
de aleluia, quando recebiam o beijo fecundante... E como sorriam as mulheres...
Parecia-me ver a que fora meu primeiro amor, meu único amor, e que sorria
assim, inebriada, quando eu a possuía...
O ar era uma alegria
só, festa universal... O amor era a atração de polos que se buscavam, de
afinidades que se saturavam, e sentia-se, no espaço, frêmito e apaziguamento
gostoso que se sucediam...
Tinha razão Bedford...
com seu animalismo sadio, saciado, contente.
Baixei os olhos para a
terra. O auto carregava-me agora pela mais populosa das avenidas, pelo trânsito
central, o eixo, a espinha de nossa civilização. As mulheres passavam quase
nuas, ou antes, apenas cobriam pouco mais do que os selvagens escondem com
penas à roda da cintura. As saias curtas, encurtando sempre, à proporção que se
civilizam. Os decotes fundos, afundando sempre na proporção das saias. E o
nudismo das praias?...
Eram reais as teorias
de Bedford! A civilização podia ser medida pela emancipação dos costumes.
Nossas avós usavam roupas fechadíssimas, do queixo aos pés, e viviam fugidas do
homem. Atrasadonas, semibárbaras, enclausuradas em casa. Se vinham à rua, era
de olhos baixos, passo monástico. E o Brasil, que era? Umas aldeias isoladas...
E as mulheres de hoje?
Vivem na rua, andam, lascivamente, em ondulações de quadris que evocam os
transportes mais quentes do amor, enquanto os seios, subindo, com a marcha, em
maré cor-de-rosa, quase ultrapassam o fragilíssimo cais de seda que as rendas
finas transparentes orlejam de espuma...
Seus perfumes
intensos, essências sintéticas em que se esgotam os químicos como Bedford -
esquecia-me de dizer que Bedford se ocupava, então, de descobrir, essências lascivas
- misturadas com as emanações dos corpos bem lavados, e ligeiramente úmidos de
suor, desprendiam-se mornos e mais capitosos, mais excitantes nos ardores da
canícula do que o satyricon que as cortesãs de Alexandria davam a beber aos
amantes velhos. E olhavam os homens com franqueza, com acessibilidade, quando
não com audácia provocadora. O amor caminha de emancipação em emancipação. E o
Brasil de hoje que é? Uma civilização que se impõe.
Entrei num
cinematógrafo. Todos os cartazes eram de beijos, de abraços, de cenas mais ou
menos lúbricas. No maior deles, lia-se Afrodite, evocação das cenas antigas de
amor que Bedford me descrevera. Havia um aviso ditado pelo Juízo dos Menores:
“Impróprio para senhoritas e menores”. E senhoritas e menores entravam, aos
bandos, com habeas corpus requerido por seus próprios pais...
Na tela, beijos
longos, infindáveis, a perda de hálito, nos quais se sentia a sucção, a
dentada, o glotismo.
A sala fremia. Os pais
confraternizavam com as filhas. Os seios das mulheres palpitavam de excitação.
Os rapazes estalavam bicotas. Meninas impúberes iniciavam-se nos mistérios de
Afrodite. Eram as classes do Didascalion, talvez mais completas... E as velhas
mães complacentes sorriam... Terminado o beijo, as outras artes de sedução feminina.
O sorriso, o gesto provocante, a carícia de surpresa, o retraimento, toda a
gama... que vinha, de novo, morrer, em abraços violentos e em beijos tão vivos,
tão quentes, tão impetuosos que, agora, até mesmo as cadeiras das velhas mamãs
estremeciam. Vaporizadores espalhavam no ar perfumes capitosos que se casavam
com as emanações animais...
E no escuro, outras
bocas se juntavam, excitadas, enquanto carícias se trocavam, e o ar se enchia
do mesmo bafo quente de sensualidade do bosque de Afrodite. As luzes vacilantes
das lâmpadas de mão dos indicadores pareciam as pupilas dos sátiros montados
nas cabras montesas que decoravam o zoóforo do antigo templo. E eu que nunca
havia percebido aquilo? Fora preciso que Bedford me abrisse os olhos! Terminara
a fita naquele frêmito de sensualidade. A luz mostrou olheiras roxas,
fisionomias quebradas e olhos ainda cheios de desejos não satisfeitos.
E há um cinema em cada
rua nas cidades modernas de Afrodite... Nunes colheu-me o braço na saída.
- Que decepção? -
disse-me ele. - O reclamo fez-me supor que a fita fosse mais ousada.
Exploradores!
Vi que toda gente saía
com a mesma impressão. Queriam mais? Por cinco mil réis só aquilo?..
Exploradores!
- Como vai o Bedford?
- perguntou-me Nunes.
E a ouvir-me contar o
assunto das preleções, concluiu:
- O Bedford está em
caminho da loucura. E faz-me pena! Tão esforçado pesquisador! Esperava-se dele
um mundo de revelações. Vou amanhã contigo à sua casa porque estou preparando
monografia acerca da obsessão sexual. Pobre Bedford! O final de todos os
grandes gozadores é a pasmaceira, a idiotia, após o furor lascivo. O
genitalismo domina-lhes todas as manifestações da vida. As alucinações eróticas
cativam os cinco sentidos, o olhar, a audição, o olfato, o tato, o paladar. Em
tudo, veem a forma sexual. Nos galhos das árvores, pernas de mulher; na curva
de uma cúpula de igreja, um ventre feminino; no vaivém do pistão de aço que se
balança dentro do cilindro de um motor, o ato venéreo; em dois cômoros que se
acuminam, seios túmidos de desejo; num vaso sagrado de altar, uma cintura, uns
quadris!
Lembrei-me das mãos de
Bedford a acariciarem, enquanto dissertava, a curva de uma retorta, como se
tirasse disso sensação voluptuosa.
- Tudo - continuava
Nunes - por mais distante que esteja da ideia genital, o erótico delirante
colhe, absorve, e compreende à luz de sua ideação monocêntrica. Louco lúcido
com a excitação da primeira fase dos delírios, tudo elabora, amolda e plasma na
visão fescenina. E ergue, na loucura incipiente, uma filosofia que, como todas
as loucuras e todas as filosofias, encontra adeptos de alma simples.
Eu era um deles,
compreendo-o agora.
- Domina-os o
pansexualismo. E paradoxo onde se encontram os extremos, levam a generalização
a afirmar que no ato da criança que inocentemente suga o alimento no seio
materno há o esboço da inclinação sexual. Todas as ações humanas, da dor à
piedade, dos atos vegetativos às mais altas concepções da arte e mais árduas
labutas da ciência, parece-lhes que obedecem a único principio, móvel ou
apetite, que se resume na obsessão sexual.
Comparei Nunes a
Bedford. A palavra de Nunes era vibrante, incisiva, com forte acento de homem,
de masculino sadio, de bife sangrento e dentes vorazes; seus gestos eram
sacudidos, de “quebro-te a cara”, de box ou luta romana. A voz de Bedford, ao
contrário, aflautava-se, dia a dia, na gama das alcovas. Seus gestos eram
moles, fatigados.
E ao ouvir Nunes,
seduziam-me suas palavras, como me haviam seduzido antes as de Bedford.
Verifiquei que meu impressionismo era como o da cera, do último toque, e
entristeci. Era organismo autônomo ou me deixaria sempre levar por outrem?
- Todos os cinco
sentidos - continuava Nunes - ficam dominados pela ideia erótica e de tão
delirante alucinação nasce moral pervertida. A ideia é o produto das impressões
sensoriais elaborado pela força definidora incutida na consciência pela
tradição, pela experiência e pelo estudo. Mas a perversão sensorial acaba por
viciar e desorganizar a concepção cerebral. Os eróticos delirantes não ouvem
senão gemidos, suspiros, soluços de corpos que agonizam em transportes de
volúpia, não palpam no que tocam senão curvas femininas, recantos sexuais, as
formas lascivas. Os cérebros dos velhos caem nesse delírio como noutros pela
fraqueza da idade, e o dos moços, como Bedford, pelo abuso do prazer.
Basta-lhes de começo o gozo normal. De tanto buscá-lo, porém, escasseiam-lhes
aos nervos a provisão de energia. Procuram, então, nas impressões imaginativas
dos vícios, das perversões e dos atos contra a natureza, sensações que lhes
reavivem o apetite embotado. É como o declive dos tóxicos. O prazer
quintuplica-se, as sensações extremam-se. Já não se satisfazem com o amor
dentro da natureza: transpõem todos os preconceitos, libertam-se de todos os
pudores e, em ânsia insaciável de gozo, entregam-se a intraduzíveis caricías,
inomináveis contatos, que a imaginação, cada vez mais enferma, lhes vai
sugerindo. E nesse gozo progressivamente maior, tocam os extremos da libido, em
frenesi demoníaco, em jubilação satânica de refinamentos sensoriais que os
deixa estendidos, frios, gelados, sem respirar, em síncope longa no leito
doloroso da volúpia. E da obsessão nasce o delírio. O sabbath dança-lhes
permanentemente diante dos olhos, e a natureza inteira transforma-se na frisa
do zoóforo do templo de Afrodite, na qual o fogo do cio corre na espinha de
todos os animais. Vem, depois, o esgotamento, a impotência. Entram, então, em
cena os excitantes, as beberagens afrodisíacas, o satyricon. E à desorganização
oriental une-se a devastação física. Sucumbem por ter batido demais às portas
da vida!
No dia seguinte fomos
juntos ao laboratório. Bedford não reconheceu desde logo o antigo aluno. Sua
memória, como as demais faculdades, ia-se apagando. Quando Nunes lhe disse o
nome, pareceu recordar-se vagamente. E repetiu: Nu... nu..., incapaz de maior
esforço, porque a visão que a primeira sílaba lhe abriu aos sentidos
empolgou-o.
- Nu... É a expressão
da maior beleza. Esta fruta, por exemplo - ele descascava uma laranja - só na
nudez revela a formosura. Vejam agora que a despi, as deliciosas e túmidas
curvas de cada gomo, o dourado da linfa, sintam a excitação do perfume, a
frescura do suco...
E, como se
vampirizasse um corpo de mulher bebendo-lhe todo o sangue, espremeu-a na boca
com os dedos até deixá-la murcha, engolindo com volúpia os grandes sorvos que
desciam em glu-glu lento.
Nunes, de pernas
cruzadas e o queixo no castão de vidro azul da bengala de junco, balançava a
cabeça em tom de desânimo. (A bengala do Nunes era coisa notável.) Eu, com a
imaginação violenta, via Bedford transformado no marechal Gilles de Rays. A
laranja era criança eventrada, cujo sangue, mesclado com humores, o sádico
sugava, indiferente ao mau cheiro das vísceras. Nunes recordara-me na véspera a
história horrenda do monstruoso sádico francês, executado em 1440, que violou e
assassinou mais de oitocentas crianças.
E acudia-me à ideia um
sádico brasileiro, de edição grosseira, que violentara e matara diversos
meninos. Os peritos reconheceram-lhe a dirimente da loucura. O juiz
aproveitara-se para dar longa mostra de erudição... em Legrand de Saule. E o
sádico assassino deixara de ser condenado. Enviaram-no para sanatório do
governo com bom quarto, boa alimentação, médico, farmácia e miúdos para os
cigarros... E como não lhe deram mulher, não tardou que tentasse violar e
estrangular um companheiro, outro pensionista do Estado.
Pobre marechal Gilles
de Rays, por que não nasceste em época supercivilizada como a nossa?
Os bárbaros de 1440
executaram-te. Se hoje o nosso sádico com só cinco ou seis assassínios pode
conseguir todas aquelas regalias, tu, marechal, com o acervo de oitocentas
crianças, sacrificadas à tua perversão, terias um palácio, e criados de libré.
Disse isso a Nunes e
ele assustou-se.
- Menino, você precisa
deixar a companhia de Bedford. Loucura pega, principalmente essa.
Reconheci a
incoerência do que me acudira, e ele se tranquilizou.
Sugada a laranja,
mostrou-nos Bedford o bagaço, e exclamou:
- Parece corpo exânime
de mulher flagelada após longo e intenso gozo, lívida, retorcida. E só o amor
dá essa enorme beatitude de êxtase, de rapto sobrenatural!
Carinhosamente, tal
que conduzisse o corpo nu de uma mulher, alisou o bagaço e acamou-o na mesa.
Nunes,
propositadamente e para lhe tomar o pulso, permitiu-se contradizê-lo.
Bedford aqueceu-se.
Quis servir-se dos mesmos argumentos históricos que me expusera.
Entrou a comparar as
grandes bacanais antigas com as expressões medrosas de nossa sensibilidade
amorosa. Descreveu a onda de sensualismo que arrancava Messalina do leito
imperial e a levava à tarimba dos quartéis, onde, em fúria ninfomaníaca, se
dava aos soldados hercúleos, de músculos enrijados pela guerra e pelos sóis da
África. Com a volúpia violenta das fêmeas dos tigres, e a fúria sensual das
leoas, esgotava-os, fazia-os morrer sobre seu corpo, encasando pela madrugada,
com os rins quebrados, o corpo lasso e dolorido, não saciada e perseguida ainda
no sono pela visão lasciva que a reconduzia, nem bem nova noite se fechava, à
violência selvagem, à caricia brutal, aos beijos acres do hálito de fumo e
álcool...
Agitava-me,
insensivelmente, na cadeira. Meus 19 anos latejavam-me nos pulsos.
Messalina!... Nunes encarava friamente a fisionomia de Bedford, que cada vez
mais se animava, ao mesmo tempo que a voz ganhava calor, a imaginação brilho, a
evocação flagrante...
Nero, o circo, os
banhos, as lentas unções de óleos nos tepidários por escravos formosos, os
vinhos bebidos em ânforas largas para que, ao mesmo tempo, se deliciassem o
olfato e o paladar, os banquetes, em cujos triclínios o amor não se
interrompia, e entremeavam-se os beijos e os pratos, enquanto nas danças,
adolescentes menores apenas púberes criavam ou reproduziam todas as formas
plásticas de conjugação. Roma delirante de sexualismo, Roma Sodoma, Roma
Gomorra de todos os vícios, do sadismo, das perversões, das lésbias e dos
invertidos que assentavam até no trono imperial, um imperador casando-se
oficialmente com outro homem - toda Roma erótica, em síntese admirável de
colorido, de definição rápida em traços fulminantes jorrou dos lábios de
Bedford.
Nunes que o conhecera
apático, de poucas palavras, espantava-se ao ouvir-lhe a loquacidade
torrencial, infatigável, inexaurível. Parecia outro Bedford, excitado por
qualquer estimulina secretada por glândulas reprodutoras desorganizadas.
Bedford terminara. E à
guisa de conclusão replicara ao olhar negativista de Nunes:
- Roma é o berço da
civilização latina, que até hoje nos aclara, e que desde então, através dos
séculos, nenhuma raça tem suplantado.
Nunes replicou-lhe.
Aquele caudal de sensualismo, longe de definir o maior momento de esplendor
grego ou romano, marcara época de decadência. Nos povos, como nos indivíduos -
e Nunes acentuou bem as três últimas palavras - a período de falsa excitação e
falso brilho que os excessos provocam, segue-se o delírio, cujo fim é a
idiotia, a abulia. O leito da luxúria torna-se leito da invalidação e da morte.
O equilíbrio desconcerta-se, a sinergia rompe-se por hipertrofia parcial, e
todo o metabolismo vicia-se na ação predominante e avassaladora da ideia fixa,
do íncubo sensual que atormenta todas as células de erotismo imaginativo, e
cria o delírio sexual.
Bedford ouvia-o com o
mesmo sorriso compassivo com que, pouco antes, Nunes lhe acompanhara as
palavras. Os loucos semilúcidos parece terem piedade imensa de nosso bom senso.
Lembro-me de um, muito rico, que se acreditava laranjeira. Punha-se nu,
alcatifava-se de folhas de laranjeira, e ficava horas no pátio da casa com os
braços arqueados como galhos, as laranjas dependuradas dos dedos. De cada vez
que lhe dava a mania, era preciso, para tirá-lo dali, mudá-lo para tina com
terra, como se fosse, de fato, laranjeira - e trazê-lo para casa. E quando no
salão, envolvia todos os mais em olhar inesquecível de piedade, como se só ele
houvesse compreendido a verdade objetiva de sua essência. Descia da tina,
colhia as próprias laranjas, e chupava-as. A mania acentuou-se. Via árvores de
frutos em todos, e foi preciso interná-lo no hospício certa manhã em que,
armado de tesoura, quis cortar os seios da criada de quarto pretendendo fossem
os frutos de uma pereira.
- A lubricidade
deforma e deprava o ato singelo que se destina, apenas, a perpetuar a espécie,
tal como o praticam os irracionais, sem extravagâncias imaginativas. Conduz o
indivíduo à decadência, à ruína moral, e as nações como as raças ao
desaparecimento - concluiu o Nunes. Das civilizações antigas o que sobrevive
não é o produto do sensualismo, mas o que deixaram perpetuado no bronze, no
mármore, na tela, nos livros eternos da razão.
- As obras de arte -
obtemperou Bedford - são apenas reflexos de exacerbação sexual. Obedecem à
libido, ao instinto multiplicador.
E citava grandes
nomes, aos pares. Dante que teve amores aos nove anos, Sainte-Beuve que
exclamava a este propósito:
“Que n’ai-je comme lui mes amours à
neuf ans.”
Flaubert, Maupassant,
Chateaubriand, cuja frase, no dizer de críticos, “tem o sabor de carne”, e
outros, e outros muitos.
- Corra a literatura
em geral - dizia Bedford - e na prosa e no verso que há além da chama
voluptuosa?
E superior, generoso,
conciliante, concluiu:
- E não é preciso ir
às artes, ou especializar as atividades humanas. O povo, o vulgo ignorante,
conhece a verdade do aforismo: Cherchez la femme. Todos os crimes, todas as
grandes tragédias, todas as desgraças do homem civilizado vêm apenas da moral
que pretende suprimir o irreprimível, desviar de seu curso atrações naturais,
afinidades invencíveis para assim favorecer interesses problemáticos da
sociedade.
E, apostolar, com os
olhos de iluminado, concluiu:
- O homem é no
Universo o único animal triste. E foi ele próprio que fabricou sua tristeza. É
o único animal descontente: e é o autor de seu descontentamento. Há na alma
humana certa ânsia, certa inquietação que não se define. É a ânsia e a
inquietação dos cativos. Regresse à natureza e estará emancipado e feliz. As
obras humanas só se tornam imortais quando impregnadas do segredo e do mistério
da vida, bebidos com volúpia nas próprias origens. Nosso riso é falso. Só a
lágrima é realidade. E por quê? Porque moral estúpida nos veda todos o gozos e
obriga-nos a esconder-nos nas furnas da hipocrisia para satisfazer instintos
naturais. A moral, em que se funda? Nas religiões. Pois os livras sagrados,
história das religiões, estão pejados de sensualismo. O Bramaputra não é mais
imoral do que a Bíblia. O “Cântico dos Cânticos” do rei dos reis, da sabedoria
de Salomão, é o mais lúbrico dos poemas da carne. A Bíblia é imprópria para
senhoritas e menores, como os espetáculos de gênero livre.
Nunes compreendeu que
era inútil insistir. Bedford ultrapassara, disse-me ele na rua, a zona possível
de discussão. A paixão erótica empolgava-o. Devia estar em uso de beberagens
excitantes, que lhe suprissem o langor do esgotamento precoce.
Sentamo-nos num banco
de jardim público, ainda sob a influência das palavras quentes de Bedford.
Arrisquei-me a lembrar a Nunes o que me dissera de Paris, de suas orgias, de
sua bacanal desenfreada. E, entretanto, é onde, justamente, a civilização
latina tem seu auge, ao passo que em outros países, como a Itália, a Espanha,
Portugal, da repressão dos costumes não resultou progresso algum. O Portugal
das conquistas, o Portugal glorioso que, pequenino, conseguira dominar a
vastidão de oceanos inexplorados, faleceu beatamente encapuchado num hábito
fradesco à porta de uma catedral. A Espanha, a Espanha ferrabrás, contra cujo
escudo inamolgável se quebrara a lança do infiel, fenecia nas vielas escuras
junto ao nicho dos santos.
Nunes, que me ouvira
atentamente, estudando-me os gestos, aconselhou-me que deixasse quanto antes o
comércio de Bedford. A imaginação exaltada e o impressionismo adolescente
punham-me em sério perigo.
- De fato,
replicou-me, Paris reproduz hoje, e talvez com mais intensidade, as orgias
bacanais antigas. A onda de luxúria e de instintos que cresceu, se avolumou e
se tornou irrefreável após a guerra, com a inversão dos valores empobrecendo as
camadas mais altas, e enriquecendo o povo, trouxe à tona as baixas tendências e
os violentos apetites dos novos ricos, sequiosos de conhecer todas as volúpias
que ontem, com indignação, reprovavam. Nas casas de tolerância, o sadismo
crucifica mulheres nuas em pranchas de madeira, ou acorcunda-as sobre cavalos
mecânicos para que ofereçam o corpo ao chicote, ao knut russo, ao relho de
cinco pontas que lhes zebreia a pele de equimoses e de sangue, manejados por
pulsos fortes de clientes degenerados, que lhes compram a miséria por uma
centena de francos. O “tronco”, como outros instrumentos de suplício, que se
destruíram com a abolição dos escravos, revive nas câmaras de flagelação dessas
casas, que se contam às dezenas e se anunciam nos jornais, que a polícia
conhece, registra, cataloga, e que pagam imposto ao Estado burguês e honesto...
Sim, isso é verdade, está em inúmeros livros franceses, que clamam contra a
dissolução. O lesbismo, o glotismo, as inversões, vivem e viçam em mais de uma
camada; funcionam às escâncaras cabarets de homossexuais ou de homens vestidos
de mulher, mercam-se com voz aflautada, enquanto a polícia, no limiar, fuma o
cigarro frouxo de sua fiscalização. A título de curiosidade, portadores de
grandes nomes da aristocracia nacional e estrangeira neles aparecem. Mas a
cultura francesa que se ergueu indignada contra um presidente de senado
encontrado morto numa casa de tolerância entre dois adolescentes, profliga as
úlceras de sua civilização, e longe das regiões que a cocaína devasta ou das
casas de ópio, nas quais homens e mulheres, alucinados pela droga, se entregam
uns à vista dos outros às mais violentas práticas de desbragado erotismo,
trabalha nos gabinetes, nos laboratórios, nos centros de ciência e de arte para
salvar a continuidade das conquistas da raça do naufrágio da brutalidade e da
incontinência.
E concluiu, eloquente:
- Nos países onde o
pensamento chega aos mais altos cimos da evolução, há na luta tremenda vencidos
e desequilibrados. São estes que, desmanchados os nervos, desfreados da
autofiscalização, emancipados, pelo delírio, da disciplina das tradições que
regem os costumes e a moral, arrastam nas noites de verão ao Bois de Boulogne
mulheres até então classificadas, que de sua loucura se contaminam, e ali de
parceria com desconhecidos se dão às mais torpes orgias entregando as próprias
esposas, pelo prazer da aventura, aos transeuntes de acaso. Mas todos esses
quadros de insânia erótica constituem exceções, minorias. Só um louco pode
esquecer-se das altas concepções mentais, do gênio francês, da obra imortal de
seus escritores e artistas para atribuí-las ao delírio genital.
Com estas palavras
despediu-se, recomendando-me que evitasse o convívio de Bedford.
(As mulheres fatais,
1928).
*
Médico e teatrólogo, membro da Academia Brasileira de Letras da qual também foi
presidente.
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