'Meu
técnico é o caminhão': O lixeiro que já deixou muitos quenianos para trás na
São Silvestre
* Por
José Paulo Lanyi
Ivanildo Dias de
Souza, de 36 anos, não falha na Brigadeiro. É o que ele mesmo diz, com orgulho,
quando se lembra da avenida (Brigadeiro Luís Antonio, travessa da Av. Paulista)
e sua ladeira de cerca de 2,5 km, trecho temido do percurso da Corrida
Internacional de São Silvestre, que marca o último dia do ano em São Paulo.
Em 31 de dezembro,
Ivanildo chegou na 25ª posição na prova mais tradicional da América do Sul. Tem
deixado muitos quenianos para trás.
O atleta de elite,
porém, tem um programa de treinamento único.
Seu dia começa às 8h,
quando se levanta e deixa a casa que ele mesmo construiu em Itaquera, na zona
leste de São Paulo. Pedala até o Parque Ecológico do Tietê, onde corre 20 km.
Volta às 13h, dorme das 14h às 17h e vai de bicicleta até o trabalho, onde
chega às 17h40.
Às 18h10, bate ponto e
segue para as ruas, já com seu uniforme de coletor de lixo. Retorna à base por
volta das 3h, chega em casa às 3h40, dorme das 4h às 8h e sai para mais uma
rotina de exercícios – desta vez composta por "tiros", corridas de
velocidade em um parque da Armênia, na região central da cidade, cujo nome ele
não lembra.
"Já são 11 anos
dormindo picado. E, quando faço treino forte, não consigo pegar no sono, fico
meio estressadão, rolando na cama. Se tiver compromisso no dia seguinte, a
cabeça não para, é ruim de dormir", explica Ivanildo à BBC Brasil.
"Mas cansado eu
não fico, não. A coleta de lixo ajuda muito na força da perna, o caminhão puxa
e você vai ou fica. Se não for, os coletores não vão querer você na
equipe."
Baiano de Monte Santo,
trabalha há 17 anos em empresas desse ramo, 11 deles na atual, a Ecourbis
Ambiental.
"Ivanildo nunca
faltou um único dia, nem chegou atrasado", afirma Jonatas Alves Pinto,
coordenador operacional. "Muitas vezes tem uma prova no domingo e dizemos
para ele descansar no sábado à noite. Mas ele se recusa, trabalha na coleta à
noite, participa da prova no dia seguinte... e ganha!", continua.
"Para ele, não
tem sábado, domingo ou feriado. É um exemplo para toda a galera", elogia o
encarregado de tráfego, Jocinei Sergio Festa.
Maratona diária
No trabalho, ele corre
cerca de 10 km diários. Como cada caminhão carrega dez toneladas de lixo,
distribuídas por três funcionários, calcula-se que Ivanildo manuseie de três a
quatro toneladas – se somados os seis dias de jornada, de segunda a sábado,
seriam 18 toneladas.
"Se eu fizesse
outro trabalho, como pedreiro, meu tempo de prova seria pior", diz ele.
"Corro subida, descida, reta, faço tiro na rampa, treino para o que der e
vier."
Os novatos no emprego
têm medo de correr com Ivanildo, acham que não vão aguentar o ritmo. Mas acabam
se surpreendendo. "A gente ajuda. Correr mesmo é lá na corrida. Aqui é
pegar o lixo em equipe e limpar a rua", ameniza.
Todo ano, a empresa
faz uma seletiva interna para a Corrida de São Silvestre e paga a inscrição da
sua equipe. Os dois coletores mais bem classificados na prova recebem, por dez
meses, uma ajuda de custo. Hoje, 17 são atletas amadores que levam o esporte
bem a sério.
"Sempre que
posso, eu oriento. Já teve coletor que, depois que começou a correr, parou de
beber", diz Ivanildo.
Ele teve que lutar
muito para entrar no pelotão de elite da São Silvestre. Dez anos atrás, só
ficava entre os 400 primeiros. Mas, após três anos de trabalho duro, conseguiu.
O atleta conta que um
representante da prova, "um velhinho de mais de 90 anos de idade",
disse que os tempos alcançados por Ivanildo não eram para qualquer um e
perguntou o que rapaz fazia. "Sou coletor de lixo", respondeu.
"Quem é o seu treinador?" – quis saber o senhor. "Olha, por
enquanto é o caminhão", respondeu, aos risos.
Pensou em parar
Ivanildo é um atleta
profissional. Além das boas classificações na São Silvestre (foi ainda o 21º em
2014; 25º em 2013; 27º em 2012; 29º em 2011), ostenta uma série de outros
resultados expressivos.
Venceu duas vezes a
Meia Maratona Cidade de São Bernardo do Campo e o Troféu Independência do
Brasil, na capital paulista, também por duas vezes. A lista é imensa. A última
prova foi em 3 de abril: chegou em segundo no Track&Field Run Series
Shopping Anália Franco.
Ele já correu por
clubes tradicionais, como o Esperia e o São Paulo, mas reclama da falta de
apoio. No ano passado, pensou em parar: venderia a casa, voltaria para Monte
Santo e trabalharia na roça.
Mas, antes da São
Silvestre 2015, soube de uma prova que reuniria 300 coletores de todo o Brasil.
Foi a Belo Horizonte e venceu a 1ª Corrida Sindeac de Garis, organizada por um
sindicato mineiro de empregados em edifícios e condomínios. Ganhou uma moto,
ficou feliz e desistiu de abandonar as corridas.
Dias depois, sua mãe
ficou doente, com suspeita de dengue ou chikungunya. Ele foi a Monte Santo e
tentou transferi-la para Feira de Santana ou Salvador, mas foi desaconselhado
pelos médicos. Quis vender a moto para pagar um convênio e salvar dona Josefa,
que criara os cinco filhos "no cabo da enxada".
Mas não havia o que
fazer. Ela morreu, aos 65 anos.
'Prefiro coletar lixo”
Hoje, Ivanildo recebe
uma ajuda de custo da empresa e um apoio do Shopping Metrô Itaquera. Entre
outras atividades, tem participado do Projeto SP Cidade Gentil, cujas imagens,
produzidas pela Damasco Filmes, foram editadas e cedidas para esta reportagem.
"Prefiro ficar na
coleta de lixo, que valoriza a gente. Para mim, não tem diferença ser o
trabalhador da coleta ou o atleta de competição. Todo mês tem o meu dinheiro
lá. Eu tenho tudo, meu carro, minha casa, minha moto por causa da coleta de
lixo. Se for para virar noite e dia, a gente joga para cima".
"Virar noite e
dia", aliás, é praticamente uma expressão literal.
"Na véspera (da
corrida), eu não durmo, fico só deitado. A prova é às 8h. Mas tenho que chegar
mais cedo para o aquecimento de 20 minutos. Levanto às 4h30 e chego lá às
7h."
Tamanho sacrifício
poderia ser evitado se Ivanildo se dedicasse integralmente ao atletismo. Talvez
ele chegasse mais longe. O índice mínimo para os Jogos Olímpicos do Rio, na
prova dos 10 mil metros, é de 28 minutos no masculino. Ivanildo já cravou 29
minutos e 29 segundos na Corrida Aniversário de São José dos Campos, em 2008.
Seria possível tirar
essa diferença com uma rotina mais leve e uma preparação melhor? Ivanildo acha
que sim. "Um atleta olímpico treina dois períodos, de manhã cedo e à
tarde. Depois vai para casa e dorme, descansa", diz ele, que ressalta a
necessidade de uma alimentação especial.
Mas esse também não é
o seu caso. Ele come mesmo é feijão, arroz, salada e frango. "Café da
manhã tomo à tarde, quando vou para a empresa. E sem pão". Carne vermelha,
duas vezes por semana, "porque pesa um pouco". E toma um suplemento
vitamínico para atletas de elite. "Não fico doente."
Uma de suas alegrias,
já há dez anos, é patrocinar uma corrida que leva o seu nome e premia cerca de
cem crianças, adolescentes, homens e mulheres de sua querida Monte Santo.
"São pessoas que vivem da roça, da enxada", diz, com brilho nos
olhos.
"Eu mesmo vim de
uma vida difícil. Vou correr até morrer."
Reproduzido de “BBC
Brasil”, publicado em 27 de abril de 2016.
(*) José
Paulo Lanyi é jornalista, escritor e dramaturgo, autor do romance
"Calixto-Azar de Quem Votou em Mim", do romance cênico (gênero que
criou) "Deus me Disse que não Existe", da peça "Quando Dorme o
Vilarejo" (Prêmio Vladimir Herzog) e das coletâneas “Teatro de José Paulo
Lanyi e Outros Loucos” e “Balbúrdia literária”, todos da editora O Artífice.
Trabalha com o músico paulistano Flávio Villar Fernandes, com quem compôs a
trilha “Invernada” e a sinfonia “Atlântica” e na BBC Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário