domingo, 10 de janeiro de 2016

O pagador de promessas


* Por Dias Gomes


O homem, no sistema capitalista, é um ser em luta contra uma engrenagem social que promove a sua desintegração, ao mesmo tempo que aparenta e declara agir em defesa de sua liberdade individual. Para adaptar-se a essa engrenagem, o indivíduo concede levianamente, ou abdica por completo de si mesmo. O pagador de promessas é a estória de um homem que não quis conceder - e foi destruído. Seu tema central é, assim, o mito da liberdade capitalista. Baseada no princípio da liberdade de escolha, a sociedade burguesa não fornece ao indivíduo os meios necessários ao exercício dessa liberdade, tornando-a, portanto, ilusória. Claro, há também a intolerância, o sectarismo, o dogmatismo, que fazem com que vejamos inimigos naqueles que, de fato, estão do nosso lado. Há, sobretudo, a falta de uma linguagem comum entre os homens. Tudo isso tornando impossível a dignidade humana. São peças da engrenagem homicida.

Como Zé-do-Burro, cada um de nós tem suas promessas a pagar. A Deus ou ao Demônio, a uma Idéia. Em uma palavra, à nossa própria necessidade de entrega, de afirmação. E cada um de nós tem pela frente o seu "Padre Olavo". Ele não é um símbolo de intolerância religiosa, mas de intolerância universal. Veste batina, podia vestir farda ou toga. É padre, podia ser dono de um truste. E Zé-do-Burro, crente do interior da Bahia, podia ter nascido em qualquer parte do mundo, muito embora o sincretismo religioso e o atraso social, que provocam o conflito ético, sejam problemas locais, façam parte de uma realidade brasileira. O pagador de promessas não é uma peça anticlerical - espero que isso seja entendido. Zé-do-Burro é trucidado não pela Igreja, mas por toda uma organização social, na qual somente o povo das ruas com ele confraterniza e a seu lado se coloca, inicialmente por instinto e finalmente pela conscientização produzida pelo impacto emocional de sua morte. A invasão final do templo tem nítido sentido de vitória popular e destruição de uma engrenagem da qual, é verdade, a Igreja, como instituição, faz parte.

O pagador de promessas é uma fábula. Sua estória é inteiramente imaginária, não obstante esteja toda ela construída sobre elementos folclóricos ou sociológicos que exprimem uma realidade. O sincretismo religioso que dá motivo ao drama é fato comum nas regiões brasileiras que, ao tempo da escravidão, receberam influências de cultos africanos. Não podendo praticar livremente esses cultos, procuravam os escravos burlar a vigilância dos senhores brancos, fingindo cultuar santos católicos, quando, na verdade, adoravam deuses nagôs. Assim, buscavam uma correspondência entre estes e aqueles - Oxalá (o maior dos orixás) identificou-se com Nosso Senhor do Bonfim, o santo de maior devoção da Bahia; Oxóssi, deus da caça, achou o seu símile em São Jorge; Exu, orixá malfazejo, foi equiparado ao diabo cristão. E assim por diante. Por isso, várias festas católicas, na Bahia (como em vários Estados do Brasil), estão impregnadas de fetichismo, com danças, jogos e cantos de origem africana. Entre elas a de Santa Bárbara (Iansan na mitologia negra), que serve de cenário ao drama. É evidente que a Igreja Católica reage a esse sincretismo. E a posição de Padre Olavo é perfeitamente lógica dentro dos princípios de defesa da religião cristã, muito embora revele uma intolerância também inerente a esse culto.

Mas o que nos interessa não é o dogmatismo cristão, a intolerância religiosa - é a crueldade de uma engrenagem social construída sobre um falso conceito de liberdade. Zé-do-Burro, por definição, é um homem livre. Por definição, apenas. O que nos importa é a exploração de que ele é vitima exploração que constitui também um dos alicerces da sociedade em que vivemos.

O pagador de promessas nasceu, principalmente, dessa consciência que tenho de ser explorado e impotente para fazer uso da liberdade que, em princípio, me é concedida. Da luta que travo com a sociedade, quando desejo fazer valer o meu direito de escolha, para seguir o meu próprio caminho e não aquele que ela me impõe. Do conflito interior em que me debato permanentemente, sabendo que o preço da minha sobrevivência é a prostituição total ou parcial. Zé-do-Burro faz aquilo que eu desejaria fazer morre para não conceder. Não se prostitui. E sua morte não é inútil, não é um gesto de afirmação individualista, porque dá consciência ao povo, que carrega o seu cadáver como bandeira.

(Coleção Dias Gomes, vol. 1, Os heróis vencidos, 1989).

* Romancista, contista e teatrólogo, membro da Academia Brasileira de Letras.



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