Adeus à jornada
* Por
Luiz Paulo Horta
Que houve problemas de
organização, todo mundo sabe. Mas, na minha cabeça, vão ficar da Jornada
algumas imagens inesquecíveis. O que pode ser mais bonito: o Papa acossado
pelas mães que lhe levavam crianças para serem beijadas, ou os bandos de
jovens, com suas bandeiras, caminhando pelas praias do Rio com um excesso de
alegria transbordando pelo rosto? Ou a imagem final de Copacabana, coberta de
gente, num dia em que o Rio mostrava toda a sua cenografia deslumbrante? Eram
retratos de um possível paraíso terrestre que, para mim, deixaram na sombra os
transtornos materiais. Aliás, a ideia da peregrinação não é exatamente a dos
confortos prosaicos.
Mas, Jesus Cristo, de
onde veio tanto entusiasmo? Não diziam que a Igreja estava se acabando, vergada
ao peso de escândalos? Ela parecia bem viva, nesses últimos dias.
Mas não cabe, aqui, o
menor triunfalismo — que seria, aliás, o próprio oposto do papa Francisco.
Assistimos, nesses dias, a muitos milagres, e rivalidades de crença pareciam
muito longe do cenário. Ontem, em Copacabana, uma faixa dizia: “Papa Francisco,
sou evangélico mas te amo!”. O padre, bispo e cardeal Bergoglio, por toda a
vida, foi um praticante do ecumenismo. Ele sabe que o mundo de hoje é
pluralista, complexo, inseguro de si mesmo, e que ninguém está à espera de uma
cruzada.
Mas ele quer os jovens
na rua — isso ele disse com todas as letras. Usou uma forma trinária que me
lembrou demais o grande Alceu de Amoroso Lima: “Ide,/ sem medo/ para servir”.
É todo o Bergoglio que
está nessas palavras. “Ide”: sair de si, do bem-bom caseiro, abrir o coração
para os mistérios da vida, reservar um espaço para o “outro” que está do seu
lado, que pode parecer um chato, mas sempre tem algo de bom. Ele poderia citar
o famoso rabino Nachman de Bratislava (século XVIII), que dizia: “Devemos
julgar os outros favoravelmente. Mesmo se alguém é completamente mau, devemos
procurar o pedacinho de bem que está nele. Nesse pedacinho de bem, aquela
pessoa não é má”. Continuava o rabino: “Se, naquela pessoa, você encontra esse
pedacinho de bem, e a julga favoravelmente, você faz ela passar do lado da
culpa para o lado do mérito”. E concluía: “Devemos aplicar essa técnica a nós
mesmos. Uma pessoa deve trabalhar muito a sério para estar sempre alegre, e
para fugir da depressão”. Não é isso puro Bergoglio? Não foi o Cristo quem
disse: “Não julgueis para não serdes julgados”?
Acho que parte da
mágica que intuímos esses dias, como um sopro de luz e de vida, vem da passagem
(ou da proximidade) de um mestre espiritual. Sim, Bergoglio é simpático, um
paizão. Mas, reparem, ele não ri o tempo todo, ele não faz gestos teatrais.
Onde é que você já viu manter três milhões de pessoas, como ontem, silenciosas
durante cinco minutos, porque ele pediu um tempo de oração? O demagogo não faz
isso, não quer que as pessoas pensem por si mesmas, quer exercer uma espécie de
hipnotismo barato.
O papa Francisco quer
que você pense, que você medite sobre esse tesouro inesgotável que é a tradição
cristã. Da Virgem Maria, de quem é devoto, ele pede a graça de “guardar essas
coisas no seu coração”.
Ele quer que os jovens
rezem — e que depois vão para a rua, inclusive para renovar a política. Não é
uma religião de portas fechadas, de caráter sectário. É uma religião aberta
para o mundo — mas que, do encontro com o Cristo, extrai a sua identidade.
Ele sabe em que mundo
estamos vivendo. Mas sabe que o desejo da transcendência mora no coração do
homem, insatisfeito numa cultura que só oferece o material e o sensório.
Ao mesmo tempo, ele
faz a dicotomia “transcendência mais encarnação”. O cristão recebe a visita do
infinito; mas enquanto há vida, estamos acampados nessa terrinha, cercados de
gente que pede justiça, pão e liberdade.
E aqui é preciso
relembrar o lema trinário do papa Bergoglio: “Ide/ sem medo/ para servir”. É o
que ele tem feito a vida toda, e pode fazer para toda a Igreja.
O Globo, 29/7/2013
*
Jornalista e musicólogo, membro da Academia Brasileira de Letras.
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