domingo, 31 de janeiro de 2016

Em terras de Espanha


* Por Adair Dittrich


Desembarquei na estação ferroviária de Atocha, Madrid, Espanha, com a impressão de que o dia ainda não tinha acordado.

Multidões saindo de trens que chegavam, multidões entrando em trens que partiam, multidões na expectativa e eu ali tentando situar minha cabeça, procurando pelos pensamentos meus no emaranhado de neurônios onde eles se entrelaçavam.

Mesmo havendo dormido profundamente, ou pensado haver dormido profundamente durante o resto de viagem, durante o resto de noite, o sono não havia sido suficientemente reparador.

Não viajáramos em confortáveis leitos de um carro-dormitório. E embora estivéssemos apenas nós duas em uma cabine comum destinada a seis pessoas, o desconforto para dormir era imenso. Desconforto aumentado pelo climatizador do trem que deveria estar regulado para próximo de zero grau segundo o meu termômetro interior.

A algazarra cosmopolita envolveu-nos na plataforma da estação. Um dilúvio de idiomas jorrava ao nosso redor.

Língua diferente, moeda diferente, cultura diferente, música diferente, comida diferente e um diferente fuso horário … e a tudo se habituar em uma lenta transição.

Mesmo tendo estudado a língua espanhola, mesmo tendo dissecado, durante anos, inúmeros compêndios científicos em língua espanhola, o linguajar comum do povo, com seu vocabulário próprio, sua gíria, seus dialetos e seus sotaques tornaram-se um desafio após minha quase mal dormida noite.

Urgente era tudo naquela manhã.

Urgente era trocar alguns dólares e os escudos em papel moeda que sobraram por pesetas.

Urgente era irmos em busca de um café com leite e um pão com manteiga antes que a hipoglicemia se manifestasse.

E urgente era encontrar logo um hotel para um refrescante e revigorante banho e um breve repouso depois.

Foi rápido e fácil encontrar uma hosteria, local mais em conta para quem viaja com parcos recursos. Fácil e rápido. Fomos a uma banca de turismo onde já fizemos a reserva e onde já pagamos a diária. Onde um atencioso funcionário nos entrega um mapa da cidade explicando a localização de nosso destino, indicando o roteiro a seguir, qual metrô pegar e quantos metros a pé a percorrer.

E então, empurrando nossos carrinhos de viagem, com as malas sobre eles, fomos em direção à estação do metrô. Sim, malas acomodadas em carrinho, pois ainda não havia, entre nós, malas com rodinhas.

Ao chegarmos no exterior da monumental estação ferroviária de Atocha um deslumbramento nos surpreendeu. A sua imagem exterior, imensa, toda em ferro e vidro.

 E então, já refesteladas em nossa hosteria, pernas esticadas, chegada era a hora de estudar o mapa de Madrid. Que maravilha! O mapa nos dava todo o traçado a seguir, a pé, pelo centro da cidade, pela parte histórica, a Plaza Mayor e tudo mais e com explicações sobre o que havia para se ver.

Nosso primeiro destino, o Museu do Prado. Fiquei horas lá, a devorar, com os olhos, toda aquela magia de que as paredes se encontram impregnadas.

Olhar as telas de Velásquez de onde as mulheres pareciam eclodir num repente com suas saias voando em impressionante bailado. Dava para se ouvir o fru-fru das sedas esvoaçando. Dava para se ver o movimento dos longos vestidos, as finas rendas voluteando no ar


Muita arte de muitos artistas, de vários séculos, ali exposta, mas Velásquez é o que da minha memória não sai.

E o final do dia não poderia deixar de ser em outro local que não fosse a Plaza Mayor. A Plaza Mayor dos infindáveis espetáculos de música flamenca com seus sapateados e palmas, suas castanholas e seus dedilhados em guitarras plangentes, seus cantantes solando melodias que exalam sufocos da alma enchendo o ar de melancolia.

Ver as bailarinas salerosas rodopiarem suas enormes e multicoloridas saias rodadas com babados mil levantando multidões.

Conhecer o forte vinho espanhol que só consegui saborear mesmo em uma taça da famosa sangria, bebida tradicional daquela terra que somente ali, naquela noite, fiquei conhecendo.

No retorno ao hotel, em uma pequena praça encontramos Manuel e seu cavalete. Manuel, um artista plástico português que nos aborda, nos mostra seus trabalhos e pede para fazer nossos retratos.

E meu rosto cansado e insone ficou eternizado à creiom em uma branca folha de cartolina.

Posso não ter gostado da imagem que ali vislumbrei. Mas, o meticuloso trabalho do artista que, em instantes, no papel imprimiu, exatamente, a realidade de muitas horas de cansaço impregnadas em minha face foi algo surpreendente.


* Médica e escritora.


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