Em terras de Espanha
* Por
Adair Dittrich
Desembarquei na
estação ferroviária de Atocha, Madrid, Espanha, com a impressão de que o dia
ainda não tinha acordado.
Multidões saindo de
trens que chegavam, multidões entrando em trens que partiam, multidões na
expectativa e eu ali tentando situar minha cabeça, procurando pelos pensamentos
meus no emaranhado de neurônios onde eles se entrelaçavam.
Mesmo havendo dormido
profundamente, ou pensado haver dormido profundamente durante o resto de
viagem, durante o resto de noite, o sono não havia sido suficientemente
reparador.
Não viajáramos em
confortáveis leitos de um carro-dormitório. E embora estivéssemos apenas nós
duas em uma cabine comum destinada a seis pessoas, o desconforto para dormir
era imenso. Desconforto aumentado pelo climatizador do trem que deveria estar
regulado para próximo de zero grau segundo o meu termômetro interior.
A algazarra
cosmopolita envolveu-nos na plataforma da estação. Um dilúvio de idiomas
jorrava ao nosso redor.
Língua diferente,
moeda diferente, cultura diferente, música diferente, comida diferente e um
diferente fuso horário … e a tudo se habituar em uma lenta transição.
Mesmo tendo estudado a
língua espanhola, mesmo tendo dissecado, durante anos, inúmeros compêndios
científicos em língua espanhola, o linguajar comum do povo, com seu vocabulário
próprio, sua gíria, seus dialetos e seus sotaques tornaram-se um desafio após
minha quase mal dormida noite.
Urgente era tudo
naquela manhã.
Urgente era trocar
alguns dólares e os escudos em papel moeda que sobraram por pesetas.
Urgente era irmos em
busca de um café com leite e um pão com manteiga antes que a hipoglicemia se
manifestasse.
E urgente era
encontrar logo um hotel para um refrescante e revigorante banho e um breve
repouso depois.
Foi rápido e fácil
encontrar uma hosteria, local mais em conta para quem viaja com parcos
recursos. Fácil e rápido. Fomos a uma banca de turismo onde já fizemos a
reserva e onde já pagamos a diária. Onde um atencioso funcionário nos entrega
um mapa da cidade explicando a localização de nosso destino, indicando o
roteiro a seguir, qual metrô pegar e quantos metros a pé a percorrer.
E então, empurrando nossos
carrinhos de viagem, com as malas sobre eles, fomos em direção à estação do
metrô. Sim, malas acomodadas em carrinho, pois ainda não havia, entre nós,
malas com rodinhas.
Ao chegarmos no
exterior da monumental estação ferroviária de Atocha um deslumbramento nos
surpreendeu. A sua imagem exterior, imensa, toda em ferro e vidro.
E então, já refesteladas em nossa hosteria,
pernas esticadas, chegada era a hora de estudar o mapa de Madrid. Que
maravilha! O mapa nos dava todo o traçado a seguir, a pé, pelo centro da
cidade, pela parte histórica, a Plaza Mayor e tudo mais e com explicações sobre
o que havia para se ver.
Nosso primeiro
destino, o Museu do Prado. Fiquei horas lá, a devorar, com os olhos, toda
aquela magia de que as paredes se encontram impregnadas.
Olhar as telas de
Velásquez de onde as mulheres pareciam eclodir num repente com suas saias
voando em impressionante bailado. Dava para se ouvir o fru-fru das sedas
esvoaçando. Dava para se ver o movimento dos longos vestidos, as finas rendas
voluteando no ar
…
Muita arte de muitos
artistas, de vários séculos, ali exposta, mas Velásquez é o que da minha
memória não sai.
E o final do dia não
poderia deixar de ser em outro local que não fosse a Plaza Mayor. A Plaza Mayor
dos infindáveis espetáculos de música flamenca com seus sapateados e palmas,
suas castanholas e seus dedilhados em guitarras plangentes, seus cantantes
solando melodias que exalam sufocos da alma enchendo o ar de melancolia.
Ver as bailarinas
salerosas rodopiarem suas enormes e multicoloridas saias rodadas com babados
mil levantando multidões.
Conhecer o forte vinho
espanhol que só consegui saborear mesmo em uma taça da famosa sangria, bebida
tradicional daquela terra que somente ali, naquela noite, fiquei conhecendo.
No retorno ao hotel,
em uma pequena praça encontramos Manuel e seu cavalete. Manuel, um artista
plástico português que nos aborda, nos mostra seus trabalhos e pede para fazer
nossos retratos.
E meu rosto cansado e
insone ficou eternizado à creiom em uma branca folha de cartolina.
Posso não ter gostado
da imagem que ali vislumbrei. Mas, o meticuloso trabalho do artista que, em
instantes, no papel imprimiu, exatamente, a realidade de muitas horas de
cansaço impregnadas em minha face foi algo surpreendente.
*
Médica e escritora.
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