O real e a ficção em “Manhã Submersa”
O romance “Manhã submersa”, publicado, pela primeira vez, em
Portugal, em 1954, de autoria de Vergílio Ferreira – escritor português cujo
centenário de nascimento é celebrado neste ano de 2016 – tem, para mim, valor
todo especial (além de sua inegável qualidade literária): o particular e
pessoal. No livro, é narrada uma experiência que me é sumamente familiar: a da
passagem de um jovem por um internato, em uma idade que mais sentimos carência
afetiva. Ou seja, na às vezes traumática transição da infância para a
adolescência. Bem, nossos casos não são rigorosamente iguais, posto que guardem
muita semelhança. A experiência de Vergílio, tão bem retratada no citado livro,
narrada na pele do seu “alter-ego”, do personagem Antonio Lopes, ou Antonio
Borralho como foi apelidado, deu-se em um seminário, embora ele não tivesse a
mínima vocação para a vida sacerdotal. A minha não.
O fato do romancista centrar sua narrativa apenas nos
aspectos negativos da separação de um adolescente da sua família e de ter a
liberdade restringida, na verdade tolhida, sem destacar os benefícios auferidos
nessa experiência, pode soar, pelo menos a alguns, a ingratidão, com o que não
concordo. Só pensa assim quem nunca viveu experiência do tipo. No meu caso, o
Pedro adulto (mais do que isso, o maduro, e até demais nas suas mais de sete
décadas de vida) reconhece, plenamente, o quanto essas internações foram
importantes na sua formação intelectual e até moral. Todavia, o Pedro criança,
que permanece vivíssimo em alguma parte do inconsciente, não consegue apagar o
que sentiu na época: solidão, sensação de abandono, certa revolta pela
restrição da liberdade, rejeição e outros tantos sentimentos, não raro
contraditórios, que assoberbam um jovem de dez, onze, doze anos ou pouco mais
em situação semelhante.
Vergílio Ferreira teve coragem de expressar seus
sentimentos, posto que na pele de Antonio Borralho. Nesse aspecto, eu ainda
estou devendo a mim mesmo: não consegui promover essa reconciliação com meu
passado. Para comentar esse romance que tem tanto a ver com minha realidade
pessoal, conto, além da meticulosa releitura do livro, com duas fontes, que
certamente irão me auxiliar bastante na tarefa a que me propus; A primeira é a
excelente análise do crítico português, Júlio Pinheiro, intitulada “O real e a
ficção na ‘Manhã Submersa’ de Vergílio Ferreira”. A segunda, é o não menos
admirável trabalho de análise acadêmica da Mestre em Literatura Portuguesa e
Africana da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Terezinha de Jesus Aguiar Neves. O título desse ensaio0 é: “’Manhã Submersa’: a
força da afetividade da escrita em ‘gesto de posse e vida’ na narrativa
literária de Vergílio Ferreira”.
A primeira questão que surge, antes de se entrar,
propriamente, no enredo do romance, refere-se a se a história contada é real (apenas
com os nomes dos protagonistas trocados) ou se não passa de pura ficção, de
criativa fantasia, com foros de verossimilhança. Que o autor foi internado no
seminário da Diocese da Guarda, junto às Donas e ao Fundão, no interior de
Portugal, não há dúvidas. Consta da sua
biografia. Quanto, porém, da narrativa realmente aconteceu e da maneira como
narra? Tudo? Uma parte? Nada? Suponho que, salvo um ou outro episódio, a
totalidade do narrado aconteceu de verdade com Vergílio, embora provavelmente
não da maneira como ele relata. Júlio Pinheiro pondera, em sua análise, que “a
memória vive entre a realidade e o imaginário”. E conclui: “Ora a distinção
entre o real e a ficção não é fácil, pois não sabemos muito bem onde está a
diferença entre os dois”. E não sabemos mesmo. Quando nos lembramos de
determinados fatos de que fomos protagonistas, ocorridos há muitos anos, as
lembranças pouco têm a ver com o realmente acontecido.
Fiz uma experiência a esse propósito. Lembrei-me de
determinado evento de que participei há uma década e fiz um relato por escrito,
o mais detalhado possível, dele. Como tenho hábito de escrever “Diários” (a
exemplo de Vergílio Ferreira, que os publicou, em forma de livros, em onze
volumes), fui a esses registros para conferir se o que relatei tanto tempo
depois era correto, se conferia com o acontecido. Não conferiu. Para começar,
tive, de cara, dificuldades para localizar a época exata da ocorrência. Acertei
apenas no ano. Errei na maioria dos detalhes, de acordo com o que havia
registrado no mesmo dia da dita ocorrência em meu Diário. Não me lembrei de
pessoas que estiveram presentes, coloquei outras tantas que não estavam lá, em
suma, pouca coisa do que a memória guardou conferiu com o que realmente
aconteceu. Se você, amável leitor, tiver o hábito de escrever Diários, faça
essa experiência. Constatará o quanto nossa memória é frágil e traiçoeira e
como preenche lacunas esquecidas da realidade com o “imaginário”. Já no que se
refere a “sensações”, isso não acontece. As coisas agradáveis e desagradáveis
ficam gravadas para sempre, mesmo que sem forma definida.
O próprio Vergílio Ferreira escreveu que o “real é uma
vigarice”. Pelo menos no que diz respeito à maneira que nos lembramos do que um
dia foi realidade, mas que tempos depois fica irremediavelmente deformada pela
imaginação, é mesmo. Por que isso acontece? Não sei explicar. Mas a experiência
me provou que é isso que acontece. Júlio Pinheiro, referindo-se ao romance
“Manhã Submersa”, pondera: “Entendo por real a vida original, autêntica,
conhecida, vivida pelos jovens no Seminário do Fundão e de modo particular por
António Lopes, o alter-ego do autor. Associo ficção à procura do belo, à
interiorização, à transfiguração, à forma poética de transmitir essas mesmas
realidades”. Voltarei ao assunto, que até aqui mal introduzi nesses descompromissados
comentários. Por hoje, convido-o, caro leitor, a refletir sobre a fragilidade
da memória e a sobrevivência das emoções, entre outras coisas.
Boa leitura.
O Editor.
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