domingo, 24 de janeiro de 2016

Como e porque sou romancista


* Por José de Alencar

  [...]

Foi essa leitura contínua e repetida de novelas e romances que primeiro imprimiu em meu espírito a tendência para essa forma literária que é entre todas a de minha predileção? Não me animo a resolver esta questão psicológica, mas creio que ninguém contestará a influência das primeiras impressões. Já vi atribuir o gênio de Mozart e sua precoce revelação à circunstância de ter ele sido acalentado no berço e criado com música. Nosso repertório romântico era pequeno; compunha-se de uma dúzia de obras, entre as quais primavam a Armanda e Oscar, Saint-Clair das Ilhas, Celestina e outros de que já não me recordo.

Esta mesma escassez, e a necessidade de reler uma e muitas vezes o mesmo romance, quiçá contribuiu para mais gravar em meu espírito os moldes dessa estrutura literária, que mais tarde deviam servir aos informes esboços no novel escritor.

Mas não tivesse eu herdado de minha santa mãe a imaginação de que o mundo apenas vê as flores, desbotadas embora, e de que eu somente sinto a chama incessante, que essa leitura de novelas mal teria feito de mim um mecânico literário, desses que escrevem presepes em vez de romances.

O primeiro broto da semente que minha boa mãe lançara em meu espírito infantil, ignara dos desgostos que preparava a seu filho querido, veio dois anos depois.

Entretanto é preciso que lhe diga. Se a novela foi a minha primeira lição de literatura, não foi ela que me estreou na carreira de escritor. Esse título cabe a outra composição, modesta e ligeira, e por isso mesmo mais própria para exercitar um espírito infantil.

O dom de produzir, a faculdade criadora, se a tenho, foi a charada que a desenvolveu em mim, e eu teria prazer em referir-lhe esse episódio psicológico, se não fosse o receio de alongar-me demasiado, fazendo novas excursões fora do assunto que me propus.

                                                      [...]

Um ano depois parti para São Paulo, onde ia estudar os preparatórios que me faltavam para a matrícula no curso jurídico.

Com a minha bagagem, lá no fundo da canastra, iam uns cadernos escritos em letra miúda e conchegada. Era o meu tesouro literário.

Ali estavam fragmentos de romances, alguns apenas começados, outros já no desfecho, mas ainda sem princípio.

De charadas e versos, nem lembranças. Estas flores efêmeras das primeiras águas tinham passado com elas. Rasgara as páginas dos meus canhenhos e atirara os fragmentos no turbilhão das folhas secas das mangueiras, a cuja sombra folgara aquele ano feliz de minha infância.

 Nessa época tinha eu dois moldes para o romance.

Um merencório, cheio de mistérios e pavores; esse, o recebera das novelas que tinha lido. Nele a cena começava nas ruínas de um castelo, amortalhadas pelo baço clarão da lua; ou nalguma capela gótica frouxamente esclarecida pela lâmpada, cuja luz esbatia-se na lousa de uma campa.

O outro molde, que me fora inspirado pela narrativa pitoresca de meu amigo Sombra, era risonho, loução, brincado, recendendo graças e perfumes agrestes. Aí a cena abria-se em uma campina, marchetada de flores, e regada pelo sussurrante arroio que a bordava de recamos cristalinos.

Tudo isto, porém, era esfumilho que mais tarde devia apagar-se.

A página acadêmica é para mim, como para os que a viveram, riquíssima de reminiscências, e nem podia ser de outra forma, pois abrange a melhor monção da existência. Não tomarei dela, porém, senão o que tem relação com esta carta.

Ao chegar a S. Paulo era eu uma criança de treze anos, cometida aos cuidados de um parente, então estudante do terceiro ano, e que atualmente figura com lustre na política e na magistratura.

Algum tempo depois de chegado, instalou-se a nossa república ou comunhão acadêmica à Rua de São Bento, esquina da Rua da Quitanda, em um sobradinho acachapado, cujas lojas do fundo eram ocupadas por quitandeiras.

Nossos companheiros foram dois estudantes do quinto ano; um deles já não é deste mundo; o outro pertence à alta magistratura, de que é ornamento. Naqueles bons tempos da mocidade, deleitava-o a literatura, e era entusiasta do Dr. Joaquim Manuel de Macedo, que pouco havia publicara o seu primeiro e gentil romance - A Moreninha.

Ainda me recordo das palestras em que o meu companheiro de casa falava com abundância de coração em seu amigo e nas festas campestres do romântico Itaboraí, das quais o jovem escritor era o ídolo querido.

 Nenhum dos ouvintes bebia esses pormenores com tamanha avidez como eu, para quem eram eles completamente novos. Com a timidez e o acanhamento de meus treze anos, não me animava a intervir na palestra; escutava à parte; e por isso ainda hoje tenho-as gravadas em minhas reminiscências, a estas cenas do viver escolástico.

Que estranho sentir não despertava em meu coração adolescente a notícia dessas homenagens de admiração e respeito tributadas ao jovem autor da Moreninha! Qual régio diadema valia essa auréola de entusiasmo a cingir o nome de um escritor?

Não sabia eu então que em meu país essa luz que dizem glória, e de longe se nos afigura radiante e esplêndida, não é senão o baço lampejo de um fogo de palha.

                                                         [...]

Naquele tempo o comércio dos livros era como ainda hoje artigo de luxo; todavia, apesar de mais baratas, as obras literárias tinham menor circulação. Provinha isso da escassez das comunicações com a Europa, e da maior raridade de livrarias e gabinetes de leitura.

Cada estudante, porém, levava consigo a modesta previsão que juntara durante as férias, e cujo uso entrava logo para a comunhão escolástica. Assim correspondia S. Paulo às honras de sede de uma academia, tornando-se o centro do movimento literário.

Uma das livrarias, a que maior cabedal trazia à nossa comum biblioteca, era a de Francisco Otaviano, que herdou do pai uma escolhida coleção das obras dos melhores escritores da literatura moderna, a qual o jovem poeta não se descuidava de enriquecer com as últimas publicações.

Meu companheiro de casa era dos amigos de Otaviano, e estava no direito de usufruir sua opulência literária. Foi assim que um dia vi pela primeira vez o volume das obras completas de Balzac, nessa edição em folha que os tipógrafos da Bélgica vulgarizam por preço módico.

                                                         [...]

Tendo meu companheiro concluído a leitura de Balzac, a instâncias minhas, passou-me o volume, mas constrangido pela oposição de meu parente, que receava essa diversão.

Encerrei-me com o livro, e preparei-me para a luta. Escolhido o mais breve dos romances, armei-me do dicionário, e tropeçando a cada instante, buscando significados de palavra em palavra, tornando atrás para reatar o fio da oração, arquei sem esmorecer com a ímproba tarefa. Gastei oito dias com a Grenadière, porém um mês depois acabei com o volume de Balzac; e no resto do ano li o que então havia de Alexandre Dumas e Alfredo de Vigny, além de muito de Chateaubriand e Victor Hugo.

                                                         [...]

Foi somente em 1848 que ressurgiu em mim a veia do romance. Acabava de passar dois meses em minha terra natal. Tinha-me repassado das primeiras e tão fagueiras recordações da infância, ali nos mesmos sítios queridos onde nascera.

Em Olinda, onde estudava o meu terceiro ano, e na velha biblioteca do Convento de S. Bento a ler os cronistas da era colonial, desenhavam-se a cada instante, na tela das reminiscências, as paisagens do meu pátrio Ceará.

Eram agora os seus tabuleiros gentis; logo após as várzeas amenas e graciosas; e por fim as matas seculares que vestiam as serras como a arazoia verde do guerreiro tabajara.

E através destas também esfumavam-se outros painéis, que me representavam o sertão em todas as suas galas de inverno, as selvas gigantes que se prolongam até os Andes, os rios caudalosos que avassalam o deserto, e o majestoso S. Francisco transformado em um oceano, sobre o qual eu navegara um dia.

Cenas estas que eu havia contemplado com olhos de menino de dez anos antes, ao atravessar essas regiões em jornada do Ceará à Bahia; e que agora se debuxavam na memória do adolescente, e coloriam-se ao vivo com as tintas frescas da palheta cearense.

Uma coisa vaga e indecisa, que devia parecer-se com o primeiro broto do Guarani ou de Iracema, flutuava-me na fantasia. Devorando as páginas dos alfarrábios de notícias coloniais, buscava com sofreguidão um tema para o meu romance; ou pelo menos um protagonista, uma cena e uma época.

                                                        [...]

                                                                                                                                                                                                                 (Como e por que sou romancista)



* Advogado, jornalista, político, orador, romancista e teatrólogo, membro da Academia Brasileira de Letras.

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