Glauber, a profecia no deserto
* Por Nei Duclós
Glauber Rocha é o tempo presente
amaldiçoado pela História. Sua pregação é feita no deserto (rural em Deus e o
Diabo, urbano em Terra em transe) porque o deserto, pela ausência, destaca o
humano entregue ao horror das contradições. Nele, a palavra incorpora o futuro
quando é murmurada pela fúria, e elimina a esperança para repor a verdade. Não
há, no cinema mundial, nada que se compare ao maremoto dessa criação sem
limites, que nos abate em ondas toda vez que vemos as imagens que produziu,
como se o delírio fosse nossa única realidade e a guerra nosso destino. Glauber
assume o que há de pior na cordialidade brasileira, esse comportamento
ciclotímico ditado pelo coração. Ele colocou a vontade no cérebro cozinhado
pelo fogo e nos encara com o gênio do seu carisma.
Maldição
Lembro a primeira das inúmeras vezes
que vi Deus e o Diabo. As pessoas levantavam fazendo gestos indignados e saíam
aos berros. Não havia concessões naquele filme maldito. Mas não havia como escapar
de Corisco abrindo os braços e gritando num zoom demolidor. Foi quando Othon
Bastos tornou-se o maior entre seus pares e nos cuspiu fora como se fôssemos as
vítimas daquele cangaço cultural.
Glauber nos transforma em formigas predadoras que precisam ser eliminadas. Ele
nos tortura com o longo assassinato de uma criança nas mãos do beato negro e
nos coloca sob a capa horripilante de Antonio das Mortes, aquele personagem
que, quando atirava, fazia Luis Buñuel saltar da cadeira.
Qual a profecia desse cinema? A de que
estamos condenados pelo que somos e morreremos na guerra que nosso ódio e nossa
vergonha produziu. "Ainda vai haver uma guerra grande nesse sertão",
predisse Antonio das Mortes. Estamos nela. Glauber eliminou as ilusões no messianismo
revolucionário encarnado por Jardel Filho e colocou Glauce Rocha como a
percepção torturada da consciência impotente. Sabemos onde estamos metidos, mas
não queremos assumir esse horror.
Fontes
Glauber nos desperta pelo susto e corta
nossas cabeças. Seu inferno é o Brasil, país que tenta decifrar filmando pelo
avesso. Estávamos ainda embalados pelas alegres comédias da Atlântida quando o
sol tomou conta da tela e havia sangue nela. Os tiros fajutos do faroeste
americano sumiram quando Glauber engatilhou o rifle de sua saga. Jamais haveria
Sam Peckinpah com seus massacres em câmara lenta se antes Glauber não tivesse
destruído as soluções bem comportadas da violência. Glauber bebeu em fontes
diversas para compor sua trama. Reproduziu os planos das procissões de A fonte
da donzela, de Ingmar Bergman, e do La Strada, de Fellini. Bebeu em A árvore
dos enforcados (The hanging three, 1959), de Delmer Daves. Nesse filme, Glauber
retirou o visual do seu Antonio das Mortes (a capa até o chão, o chapéu, a
arma), inspirado no mendigo encarnado por George C. Scott (visual que foi
chupado até o osso, não de Daves, mas de Glauber, por Sergio Leone).
Glauber
tinha bebido em Terra Trema, de Visconti para filmar seu Barravento. Ele não é,
portanto, um cineasta de geração espontânea. Mas quando decidiu fazer um filme
com a câmara que comprou por ter vendido o fusca doado pela família, resolveu
ir fundo, e queimou seus navios de areia. Pagou por isso. Foi morto pela
indiferença dos contemporâneos, pois tudo Glauber poderia agüentar, menos a
espera ansiosa dos outros pela sua morte prematura. Então foi-se, carregado
pela sua mensagem. Ainda não merecemos Glauber Rocha, a profecia que se cumpriu
no seu corpo torturado e que se cumpre agora, na guerra total do país que
desistiu de ser uma nação.
*
Autor de três livros de poesia: “Outubro” (1975), “No meio da rua” (1979) e “No
mar, Veremos” (2001); e de um romance: “Universo Baldio” (2004). Jornalista
desde 1970 e bacharel em História. Trabalha atualmente em Florianópolis, onde é
editor-executivo de duas revistas.
Glauber é um mistério e a análise dele é uma festa.
ResponderExcluirSou autor de vários livros de poesia. Além dos citados, publiquei Partimos de Manhã (2012), e os ebooks Arraso Poemas de Amor e Pampabismo e Enigminas: Conversos (2012) Cálida Palavra (2013), Verso Esparso e Trovador (2014) e Semeador (2015). Além do romance citado, sou autor de Tudo o que pisa deixa rastro (romance, 2015, edição impressa do autor, selecionado pela Petrobras Cultural). Há anos deixei de ser editor executivo de duas revistas em Florianópolis. Por favor, atualizem meu perfil.
ResponderExcluirJá fiz anteriormente a correção do meu perfil, mas ele permaneceu idêntico, imutável, eterno.
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