domingo, 31 de janeiro de 2016

“Ressurreição” da memória por conta do acaso


O economista italiano do século XVIII, Ferdinando Galiani, afirmou, em certa ocasião, em indisfarçável tom de desabafo: “A imortalidade é apenas um terreno disputado ao esquecimento, mas bem fracamente disputado”. Ele estava errado? Claro que não!! Ele próprio, que no seu tempo foi celebridade, personalidade reconhecida e citada nos meios econômicos, hoje está esquecido. Poucos sabem que sequer existiu. Só tomei conhecimento de sua existência por puríssimo acaso. Quanta gente (e levo a questão para a minha “praia”, a Literatura), não passou por isso? Quantos escritores, famosos enquanto vivos, que todos acreditavam estar “imortalizados” em suas obras, não foram completamente esquecidos? Quantos foram os que não sobreviveram, sequer, a uma única geração após sua morte? Alguns, contudo, contam com a ação positiva do acaso e, subitamente, acabam “ressuscitados” (não fisicamente, óbvio).

É o caso do poeta peruano César Vallejo. Até há mais ou menos três anos (não estou seguro quanto ao tempo exato), jamais havia lido ou ouvido a mínima menção ao seu nome. E quando ouvi, não me passou pela cabeça a mais remota suspeita que se tratasse de um poeta e, mais do que isso, de um ícone da hispanidade, ombreado a um Pablo Neruda e a uma Gabriela Mistral, mesmo não tendo um Prêmio Nobel de Literatura em seu currículo, como essas duas glórias literárias chilenas. Soube dele (aliás não propriamente dele, mas de seu nome), porque gosto de futebol e busco estar informado sobre tudo o que ocorre neste que é o esporte das multidões. Ouvi falar do time peruano “Club Deportivo Universidad César Vallejo”, da cidade de Trujillo, que há três anos (se não estou enganado) iria representar o Peru na Copa Libertadores da América (que, de fato, representou).

Curioso, como sou, quis saber quem era essa pessoa que emprestara nome a esse time de futebol, relativamente novo (fundado em 6 de janeiro de 1996 e que completou, portanto, há alguns dias, vinte anos de fundação). Pensei, inicialmente, que se tratasse de um dirigente esportivo. Ou, quem sabe, de um professor ilustre, já que nessa cidade há uma universidade chamada assim e o tal time está vinculado a ela. Nunca me passou pela cabeça, porém, que se tratasse de um poeta, e muito menos com a importância que teve. Casualmente, um amigo sugeriu, na base de puro palpite, que talvez fosse um escritor. Meio que por intuição, desconfiei que pudesse ser um poeta, por que não?

Decidi conferir. Acessei o site de Antonio Miranda, um dos mais completos espaços de poesia que conheço tratando de autores brasileiros, hispânicos, africanos e vai por aí afora. E... bingo! Acertei na mosca. Fiquei sabendo que o sujeito que dá nome ao time que iria (ou irá) enfrentar o São Paulo na fase inicial da Copa Libertadores da América, foi um poeta. E não um poeta qualquer, mas um inovador, um mágico das palavras, um escritor que, se a exemplo do seu conterrâneo Mário Vargas Llosa, ganhasse um Prêmio Nobel, ninguém iria estranhar. Aliás, iria aplaudir. O acaso, portanto, pelo menos para mim (e creio que para milhares e milhares de outras pessoas) tirou César AbrahamVallejo Mendoza (nascido em Santiago de Chuco, no Peru, em 1892 e que morreu em Paris, em 1938) do ostracismo a que estava injusta e estranhamente relegado. Foi uma descoberta que não somente enriqueceu minha cultura literária, mas proporcionou-me enorme prazer estético, pois tive, também, acesso à sua bela poesia.

Antonio Miranda diz o seguinte desse escritor: “César Vallejo é o grande poeta da hispanidade, talvez o mais contido entre os mais produtivos — sem a excessividade magnífica de Neruda, sem o radicalismo experimentalista de Huidobro. Genial em todas as suas frases, desde Los Heraldos Negros (1919) e Trilce (1922), quando exercita um modernismo com ressábios simbolistas e um certo hermetismo sensual e auto-flagelador. Mas é na temporada européia, confrontando as correntes revolucionárias desde o dadaísmo e o surrealismo que ele conjuga um certo automatismo verbal com sua veia telúrica e social, executando um praxismo frasístico com os paradoxos da reflexão crítica, às vezes prosaica e irônica”;

Antonio Miranda cita esta deliciosa (e polêmica) indagação de César Vallejo: “O que há de mais desesperador na terra, que a impossibilidade em que se acha o homem feliz de ser infeliz e o homem bom de ser malvado?” A seguir, reproduz a paradoxal resposta do poeta ao próprio questionamento: “Distanciar-se! Parar! Voltar! Partir! Toda a mecânica social cabe nestas palavras”. E não cabe?! Entendo que sim! Voltarei a tratar, oportunamente, César Vallejo, agora com relativo conhecimento de causa, pois tive a oportunidade de ampliar minhas pesquisas sobre sua vida e sua obra, consultando várias outras fontes.

Como sempre faço, ao tratar de algum poeta, reproduzo, abaixo, um de seus poemas, em ritmo de prosa, com tradução desse “expert” em poesia que é Antonio Miranda:

A violência das horas

“Todos estão mortos.

Morreu dona Antônia, a rouca, que fazia pão barato no burgo.
Morreu o padre Santiago, a quem prazia que o saudassem os jovens e as moças, respondendo-lhes indistintamente: “Bom dia, José! Bom dia, Maria!”

Morreu aquela jovem loura, Carlota, deixando um filhinho de poucos meses, que logo também morreu, oito dias depois da mãe.

Morreu minha tia Albina, que costumava cantar tempos e modos de herança, enquanto cosia pelos corredores, para Isidora, a criada de ofício, a honradíssima mulher.

Morreu um velho torto, seu nome nem lembro, mas dormia ao sol da manhã, sentado à porta do amolador da esquina.

Morreu Rayo, o cão de minha altura, ferido de uma bala perdida.

Morreu Lucas, meu cunhado na paz das cinturas, de quem me lembro quando chove e não resta ninguém em minha experiência.

Morreu em meu revólver minha mãe, em meu punho minha irmã e meu irmão em minha víscera sangrenta, os três ligados por um gênero triste de tristeza, no mês de Agosto de anos sucessivos.

Morreu o músico Méndez, alto e sempre bêbedo, que solfejava em seu clarinete toadas melancólicas, a cujo modulado adormeciam as galinhas de meu bairro, muito antes que o sol se fosse.

Morreu minha eternidade e a estou velando”.

Boa leitura.

O Editor.



Um comentário:

  1. Que poema tocante. Fala da morte de uma forma inabitual e, pelo menos para mim, completamente original.

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