Tarifa não é dinheiro, é tempo
* Por Eliane Brum
Tempo não é dinheiro.
E tarifa é tempo, não dinheiro. São sobre tempo, portanto, e não sobre
dinheiro, os protestos contra o aumento das passagens do transporte público em
2016, como foram os de 2013. Se não for resgatada a potência do que está em
jogo nas ruas de São Paulo e de outras cidades do Brasil, tudo se repetirá como
farsa. E a Polícia Militar brutalizará os corpos já brutalizados pela tarifa e,
principalmente, pela vida monetarizada. A vida reduzida à lógica do capital.
Há duas linhas
principais na narrativa dos protestos por parte da imprensa. Uma destaca o fato
de que o aumento da tarifa de ônibus, trens e metrô de São Paulo, de 3,50 reais
para 3,80 reais, foi menor do que a inflação. A outra aponta o “confronto” da
Polícia Militar com os manifestantes para impedir a depredação e o “vandalismo”
do patrimônio. Essas duas abordagens, intimamente ligadas, aparecem como
naturais, como se houvesse uma ordem “natural” que dissesse respeito à
“natureza” das “coisas como as coisas são” que precedesse a vida e a política –
e também a tarifa do transporte público e a ação das forças de segurança do
Estado. São os dogmas não religiosos que mesmo uma parte da imprensa laica reproduz.
Na primeira linha
narrativa está implícita a afirmação de que, se a tarifa subiu menos que a
inflação, não há razão para os manifestantes protestarem. Seria óbvio que, na
ponta do lápis, é preciso que a inflação seja reposta para que o sistema possa
seguir operando. Assim, subir menos que a inflação seria uma benesse pela qual
a população deveria ficar agradecida. A afirmação embutida é de que a lógica da
vida é monetária. E, principalmente, a de que tarifa de transporte não é uma
questão de política, mas de saber fazer contas.
A segunda linha
narrativa transforma a Polícia Militar na principal protagonista, na medida em
que as forças de segurança do Estado decidem qual será o desfecho da
manifestação – ou se vão jogar bombas de gás, disparar balas de borracha e
descer o cassetete no começo, no meio ou no fim dos protestos. Esta é a
pergunta suspensa sobre cada ato contra o aumento da tarifa. E é com
“naturalidade” que isso é descrito, como se a PM fosse um corpo autônomo e como
se sua ação não dissesse respeito a uma visão de mundo nem fosse resultado de
uma ordem do governador. É também como se governador e PM não tivessem que
prestar contas à população. A atuação da PM diria respeito à ordem “natural”
das coisas – e não à política. “Manter a ordem” seria uma ordem acima da ordem,
sem necessidade de passar pela pergunta obrigatória sobre que ordem é essa que
se pretende manter.
Esses dogmas laicos –
e os laicos podem ser piores do que os religiosos, porque escondem o que são –
servem para encobrir o que está em jogo nos protestos contra o aumento da
tarifa do transporte. E, principalmente, que esse protesto seja nas ruas e que
seja sobre transporte – e não sobre outra dimensão da vida. Esses dogmas laicos
servem para encobrir que se trata de tempo – e não de dinheiro. Trata-se de patrimônio
imaterial, intransferível, de cada pessoa – e não de patrimônio material,
comercializável, rentável, de corporações ou estados. Esses dogmas laicos
servem para encobrir que os protestos são políticos, sim, mas políticos no
sentido profundo da política, que diz respeito a como as pessoas querem estar
com as outras no espaço público. E de como querem viver o que de mais
importante têm ou tudo o que de fato têm numa vida: tempo.
Vale lembrar da frase
de lembrança sempre urgente do professor Antonio Candido, um dos intelectuais
brasileiros mais importantes do século 20: “O capitalismo é o senhor do tempo.
Mas tempo não é dinheiro. Dizer que tempo é dinheiro é uma brutalidade. Tempo é
o tecido de nossas vidas”. Quando se vai às ruas protestar contra 20 centavos,
como em 2013, ou contra 30 centavos, como agora, em 2016, não é “só” sobre 20
ou 30 centavos. Ainda que seja também, o protesto é principalmente sobre algo
que, ainda que o capitalismo bote preço, escapa do capitalismo. Não existe uma
“natureza” inerente ao tempo que diga que ele tem preço. Existe política e
cultura, existe criação humana.
É de política que se
trata quando se protesta contra a apropriação do tempo. A lógica dos protestos
é a de que tudo pode se mover, porque cultura e porque criação humana. É também
a lógica do possível, não do já cimentado. Assim, a lógica dos protestos não se
sujeita a dogmas. Ela se sujeita ao sujeito. E o sujeito, quando sujeitado,
objeto se torna. É essa a conversão feita pela lógica da monetarização e pela
lógica da brutalização dos corpos pela PM: reduzir o sujeito a objeto para que
nada se mova. Para impedir que isso se repita como farsa, é necessário
reafirmar a gestão do tempo como uma experiência da política.
Pesquisas que
relacionam quantidade de tempo de trabalho e valor monetário da tarifa, como a
realizada pelos economistas Samy Dana e Leonardo Lima, da Fundação Getúlio Vargas,
são importantes. Em São Paulo, uma pessoa precisava trabalhar, em 2015, cerca
de 13,30 minutos para pagar a passagem. Já em capitais que costumam ser
admiradas e elogiadas como o melhor do capitalismo, onde os serviços de
transporte público apresentam qualidade reconhecidamente melhor, as tarifas são
mais baixas e até muito mais baixas: Londres (11,30 minutos), Madri (6,20
minutos), Nova York (5,80 minutos) e Paris (4,50 minutos).
A exposição da
discrepância dos valores monetários, provando que é possível ter uma tarifa bem
menor mesmo em países capitalistas, é fundamental para começar a desconstruir
as contas e revelar o material que nelas está embutido, para muito além da
reposição da inflação. É essencial para fazer as perguntas mais complicadas, aquelas
necessárias para a compreensão de por que no Brasil há uma tarifa tão cara para
um serviço tão péssimo. Mas talvez o mais importante desse tipo de pesquisa
seja chamar a atenção para o elemento principal, o tempo.
Vale a pena destacar o
fato de que uma parcela das pessoas trabalha mais de 13 minutos em São Paulo
para pagar uma única passagem de ônibus ou trem para alcançar o local de
trabalho. Para a ida e a volta é quase meia-hora de vida. E muitos pegam mais
do que um ônibus e um trem para a ida e para a volta, engolindo mais vida. E
isso sem contar o tempo médio que cada um leva neste percurso, às vezes horas.
De vida. Também vale a pena lembrar que, para o lazer, falta.
Me refiro a pessoas –
e não a “trabalhadores” – para não reduzir a larga dimensão de uma existência a
trabalho ou à monetarização dos corpos. Assim, esse tipo de pesquisa serve para
lembrar não que tempo é dinheiro, mas justamente a negação dessa
monstruosidade: tempo não é dinheiro. É isso que os manifestantes contra a
tarifa lembram a todos ao ocupar as ruas. Mas sua voz é encoberta pelos dogmas
laicos. Que, como todo dogma, recusam qualquer dúvida.
Quando a voz é
encoberta, a política e a possibilidade de mudança são caladas. Pela força,
como se vê. O papel reservado à PM é justamente o de manter uma ordem ordenada
por aqueles que detêm o poder de dizer qual é a ordem que vale. De sujeitos da
sua ação política, do seu verbo, os manifestantes são reduzidos nas ruas a
objetos da ação de um outro, que conjuga o verbo silenciar usando o estrondo
das bombas. E assim impede o debate sobre o transporte como um direito social,
recentemente incluído na Constituição, mas ainda não expresso na prática
cotidiana.
Aqueles que defendem a
tarifa zero, como o Movimento Passe Livre (MPL), principal articulador dos
protestos de 2013 e de 2016, acreditam que não é o usuário que deve pagar
individualmente pelo serviço, mas o conjunto da sociedade, para que todos
tenham acesso ao direito de ir e vir. Como acontece, costuma lembrar o
engenheiro Lúcio Gregori, secretário de Transportes na gestão de Luiza
Erundina, na coleta de lixo, na educação e na saúde, entre outros exemplos, com
melhores ou piores resultados. Acontece porque a sociedade entende que é
importante garantir o acesso a todos. Há várias propostas circulando de como
isso poderia ser implementado, mas esse debate é obscurecido e seus
interlocutores reprimidos.
A tarifa zero é
controversa? É. Como tudo o que pertence à esfera da política. Talvez menos
controversa do que a ideia de um serviço essencial estar submetido à
rentabilidade dos empresários do ramo. Mas, qual é a ameaça tão grande à ordem
e aos dogmas, que não é possível sequer levantar um cartaz pela tarifa zero sem
levar bomba de gás ou um cassetete na cabeça ou no lombo? Essa é a pergunta
óbvia que qualquer um deveria fazer antes de sair defendendo a repressão aos
manifestantes ou dizendo que a tarifa zero é irreal. Numa democracia não há
nada que não possa – ou mesmo deva – ser debatido pela sociedade. Numa
democracia o único imperativo acima de qualquer discussão é este: a obrigação
legal e ética de dialogar sobre tudo. Neste caso, dialogar antes de impor um
aumento de 30 centavos.
Dialogar não é uma
escolha para governantes eleitos, como o governador de São Paulo, Geraldo
Alckmin (PSDB), e o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT). Ambos perdem
sua legitimidade se não dialogam com os múltiplos atores da sociedade dentro do
sistema que os elegeu. É a obviedade seguidamente esquecida de que o poder não
lhes pertence, foi apenas a eles delegado pelo voto. Que Alckmin e Haddad, que
representam PSDB e PT, estejam juntos nessa empreitada do aumento da tarifa sem
o necessário diálogo com a sociedade sobre como se mover em São Paulo é mais
uma prova da corrosão da política partidária, com a crescente perda de sua
capacidade de representação. O fato de que Haddad, um prefeito que tem ousado
na mobilidade urbana, enfrentando a rejeição de setores das classes média e
alta paulistanas, esteja ao lado de Alckmin, um governador conservador que
costuma reclamar que os movimentos são políticos, como se pudessem ser qualquer
outra coisa, estejam alinhados no aumento da tarifa, embora não na violência da
PM, revela o quanto esse tema é espinhoso. Mais um motivo para ser debatido – e
não o contrário.
É necessário prestar
atenção às palavras usadas para narrar os protestos. “Confronto”, por exemplo,
pressupõe forças semelhantes, e pressupõe que essas forças semelhantes ocupam
um mesmo lugar simbólico. Quando usado em discursos, títulos e textos da imprensa
para descrever os protestos e a ação da PM, esse termo pode estar a serviço do
apagamento de uma dimensão fundamental dessa relação: os manifestantes são
cidadãos exercendo seu direito de protesto e as forças de segurança do Estado
deveriam estar protegendo esse direito. Apaga-se assim o fato de que é de
normalidade democrática que deveria se tratar – e não de um lado e de outro
lado, como se fosse uma guerra e se tratasse de inimigos.
Nas vezes em que isso
é questionado, ouve-se frases como a do governador Geraldo Alckmin (PSDB),
esquecendo-se subitamente de que elogiou a PM que espancou adolescentes nas
manifestações contra a “reorganização escolar”: “Manifestação legítima e
pacífica é positivo, é nosso dever acompanhar e dar segurança. Outra coisa é vandalismo
seletivo”. Para justificar que a polícia que comanda violou a lei ao jogar
bombas e disparar balas de borracha contra manifestantes, é usual sacar da
manga do terno uma outra expressão: a “manifestação pacífica”.
Essa expressão contém
pelo menos dois pontos sobre os quais vale a pena refletir. O primeiro é que,
mesmo que uma pequena parte dos manifestantes deprede o patrimônio, isso não
autoriza a PM a abusar da força. É para fazer melhor que isso que ela deveria
ser treinada, já que não se trata de uma gangue de rua, mas das forças de
segurança do Estado. Que parte da sociedade tolere e seguidamente aplauda que a
PM atue como uma gangue de rua, truculenta e despreparada, é preocupante.
O outro ponto, e este
é mais insidioso, é o de insinuar que conflito é algo negativo. O espaço
público, como tão bem disse o arquiteto Guilherme Wisnik, é um lugar de
conflitos: “O grande atributo da esfera pública é mediar o conflito, porque a
sociedade, em si, é conflituosa. A ideia de um espaço sem conflitos é ideológica,
uma pacificação irreal. Quando um espaço público não tem conflito é porque ele
não está cumprindo sua função”.
Quando os
manifestantes vão às ruas levantando a bandeira da tarifa zero estão em
conflito com a visão de setores dos governos e da sociedade que defendem ideias
opostas. Tentar apagar os conflitos, sem enfrentá-los com debate e com escuta,
como historicamente o Brasil fez em temas como o racismo, leva a uma
“pacificação” que todos sabemos falsa. É o “confronto” – e não o conflito – que
pressupõe inimigos a serem esmagados, espancados com golpes de cassetete e
intoxicados com gás.
É preciso prestar
mesmo muita atenção às palavras antes de reproduzi-las ou de assumir um
discurso que pode ser o mesmo do opressor. Quando os manifestantes “param” ruas
de São Paulo, eles não estão parando. Ao contrário. Eles estão andando nas ruas
de São Paulo. Movendo-se. Quando “interrompem” o tráfego, eles não estão
interrompendo. Os carros param para que as pessoas andem. Movam-se. É
exatamente para que não se movam que a PM “encurrala” e “cerca”, “reprime” com
bombas de gás, balas de borracha e cassetete. É exatamente para que não andem
que a PM “detém” ou “prende” ou “imobiliza” manifestantes que depois são soltos
porque não há nem nunca houve justificativa legal para detê-los ou prendê-los
ou imobilizá-los. A grande subversão, afinal, é andar. Mover-se. É preciso
impedir que andem para que nada se mova “na ordem natural das coisas”.
Para que serve a PM
com seu aparato de guerra? Para controlar os corpos com golpes de cassetete,
balas de borracha e bombas de gás e manter o mover-se como valor meramente
monetário. Para impedir que as pessoas perguntem por que não podem andar. A PM
está lá para proteger o “patrimônio”. Mas não o patrimônio humano, este é
barato na lógica da monetarização: mais de 13 minutos de vida para pagar uma
passagem de ônibus. Os corpos dos que querem andar podem ser espancados,
intoxicados, violados porque a vida humana, pelo menos a da maioria, tem valor
baixo. O que não pode é “depredar” o patrimônio de fato caro, o material.
A PM vandaliza pessoas
para proteger patrimônio. Mas o discurso é perversamente invertido para que os
“vândalos” sejam os que quebram cimento, vidro e ferro e não os que perfuram
carne humana. Se seguidas vezes a PM vandaliza manifestantes antes de qualquer
depredação do patrimônio, é possível pensar que isso acontece tanto porque a PM
está a serviço de produzir “vândalos” e “confronto”, para encobrir a reivindicação
das ruas no noticiário, quanto pelo fato de que o patrimônio que ela de fato
está protegendo 24 horas por dia é o do status quo, e este está ameaçado desde
que o primeiro manifestante bota o pé na rua.
A insubordinação dos
que andam, a que a PM é instada a reprimir, é a de dizer que seu tempo tem
valor – e este valor não é meramente monetário. É essa a rebelião que precisa
ser esmagada antes que avance pelas ruas. O movimento a ser interrompido pela
força, antes que interrompa o trânsito dos privilégios, é aquele que lembra que
tempo não é dinheiro, mas o tecido da vida. É aquele que reivindica o tempo
“para os afetos, para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela, para
conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis”.
Passaremos.
*
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não
ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da
Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site:
desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter:
@brumelianebrum
Nenhum comentário:
Postar um comentário