“A
saudade é arrumar o quarto de um filho que já morreu” (Chico Buarque)
* Por
Mara Narciso
É Dia de Natal. A
metrópole acorda menos desvairada. Há pouco, as famílias brindavam a chegada do
Menino Jesus. Em volta de uma mesa aconteceu a comunhão dos bons sentimentos. A
sua vida, meu querido, está mansa e segue menos acelerada hoje, com ressaca de
bom vinho. Seus netos abrem os presentes, trazendo em você a melancolia de
outros natais jogados lá no passado, quase esquecidos em sua simplicidade de
menino pobre, quando ganhar uma bola era um acontecimento.
Então, chega a notícia
da morte do seu filho, de apenas 34 anos. É um nocaute, uma catástrofe que lhe
é servida crua. Assimilá-la é, naturalmente, impossível. A sua cabeça e a sua
vida se tornam um rodamoinho. Giram alucinadamente e uma máquina do tempo traz
o nascimento do menino, a primeira vez em que o viu, um corpinho tão frágil,
tão lindo, tão filho seu.
Nascer para viver
pouco, desarrumando a ordem o deixa louco, mas é preciso providenciar, definir
funeral, arrumar o corpo, velá-lo como bom cristão. Ver seu filho no caixão,
entre flores, seu menino lindo, inteligente, amado, querido. Não, não e não!
Quanto suplício! É uma aberração enterrar um filho. Os maus sentimentos invadem
cada célula do seu corpo e rompem com cada uma delas. Uma falta de chão, um
vazio, uma cabeça oca, numa desordem que altera sua percepção do universo,
enquanto uma dor profunda rasga seu peito, divide seu corpo ao meio, dilacera
sua alma. O sangue corre com dor e agonia, pois “se enganou de veia e se
perdeu”. Os órgãos são esmagados e você se contorce. Sensações pavorosas lhe
torturam e num susto vem a convicção do nunca mais.
Nada pode lhe
consolar, mas ter cumprido seu papel, sendo um pai em letras maiúsculas, amigo
compreensivo e de mãos dadas nas precisões, acalma. “É preciso amar as pessoas
como se não houvesse amanhã” (Renato Russo), e este amanhã não existirá. Você
amou.
Os dias passam, o
pensamento chega (na verdade ele não lhe sai da mente), e lhe dá um baque no
peito, sendo urgente chorar. Chore até se sentir saciado, não segure nada, e
então, farto de chorar, chore por mais meia hora. Entornar lágrimas limpa o
corpo e a alma, depura o espírito, especialmente para quem pensa no infinito e
acredita no eterno.
Algum remédio o conduz
ao sono, mas é preciso acordar. A luz do sol traz você dos sonhos para sua
realidade rasgada. Então, lhe vem a imagem dele, do menino amado, na primeira e
última cena de todos os momentos do seu dia. É preciso manter a lucidez e
aceitar as palavras de conforto, acumulando coragem, força e fé. Tudo já está feito.
Eu sinto muito, mas
não me atrevo a imaginar a dor que sente. Assim como encontrar uma peça de
roupa ou outro objeto do filho querido, dar de cara com uma lembrança dilacera
o peito mais uma vez. A sua fé, que eu sei, é grande, o ajudará a transpor os
maus tempos. Viva sem limites cada estágio desse luto. Não se esconda de
nenhuma etapa. Grite, esperneie, questione, maldiga e traga cada fase da vida
do seu menino para sua frente. Fale tudo que precisar falar.
A dor é insuportável
porque seu filho não é a sua melhor parte. Ele é você inteiro. Mas um dia, que
você acredita que não chegará, uma saudade suave ocupará seu coração. Nisso eu
creio.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Nenhum comentário:
Postar um comentário