Reféns no meio do mato
* Por
Mara Narciso
“Tenho 50 anos e
trabalho num salão de beleza. Há alguns dias, após o casamento de um primo,
noutra cidade, estávamos voltando para casa. Duas horas da manhã, no ônibus
fretado, quase toda a minha família, quarenta pessoas entre adultos e crianças,
estava dormindo. Era noite quente, sem lua e o ronco de alguns ressoava dentro
do coletivo. Ao meu lado, o meu marido, atrás de nós a minha mãe com minha irmã
e depois meus dois filhos. Chegávamos às imediações de Pirapora, a caminho de
Montes Claros.
Tudo normal, motorista
atento à estrada, eu observava, pois não conseguia dormir. Então, um estampido
ecoou dentro do ônibus, e um projétil atravessou seu interior, passando por
sobre nossas cabeças. Acordaram sobressaltados, enquanto o motorista atendeu as
ordens de um comando do lado de fora, e parou o veículo. Na sequência, dos seis
homens armados, dentro de uma camionete, que tinha atravessado o nosso caminho,
quatro deles subiram, sendo que dois deles, rapidamente, foram ao fundo e dois
ficaram na frente do corredor. Um bandido encostou o revólver na nuca do
motorista e gritou para que ele entrasse na estrada de terra, seguidos pelo
carro deles. Adiante, no meio da escuridão e do nada, mandou parar.
Enlouquecidos, esperávamos, debaixo da mira dos revólveres.
O ônibus teve seu
porta-malas invadido pelo restante da quadrilha, cujo chefe berrava para que
ninguém reagisse, senão seria pior. Eram jovens, tinham cara de profissionais e
não demonstravam nervosismo excessivo. Provavelmente, não estavam sob efeito de
drogas, pois estavam coerentes e seguros. Continuaram passando de poltrona em
poltrona, com armas agressivamente apontadas para nós, controlando pela frente
e por trás. Pensavam tratar-se de sacoleiros vindos do Paraguai. Quando
souberam que não éramos, não desistiram do assalto. Pegaram algumas malas
fechadas. Outras foram abertas ali mesmo no meio da poeira, e cataram o que
acharam que era bom, como perfumes, roupas, sapatos (em geral viajamos com
nossas melhores roupas e para o casamento levamos tudo novo), jóia, secador de
cabelos, dinheiro.
Dentro do veículo, a
tensão era máxima. Ameaçavam dar coronhadas em quem bancasse o engraçadinho.
Crianças choravam, todos tremiam de pavor, e por desespero batiam queixo. O
chefe gritava por silêncio. E o arrastão seguia passo a passo, mandando a
pessoa se levantar, ir ao meio do corredor, e então o assaltante a apalpava
procurando por celular, dinheiro e arrancava jóia. Alguns tinham, mas a maioria
estava, com nenhum ou pouco dinheiro. Na minha família menor, exceto minha mãe,
todos tinham celular novo, e ficamos sem quatro deles. Comprei sapatos novos,
todos foram retirados das malas e jogados na caçamba do carro.
Brincos, pulseiras e
anéis foram pegos com grosseria, e de preferência entregues de forma ágil, para
não levar pancada. Ameaçaram que se alguém escondesse qualquer coisa, iria
morrer. Aconteceu o ponto extremo do nosso medo, quando a minha cunhada não
conseguiu retirar a aliança de casamento no seu dedo anular há mais de 25 anos.
Ela engordou, e, chorando, informou que já tinha tentado, noutra ocasião,
inclusive sabão e até óleo e nada fazia a aliança sair. O bandido berrou: “você
tem dez dedos, caso a aliança não saia, eu arranco seu dedo a faca e você
ficará com nove”. E mostrou a arma. Houve quem chorasse e pedisse por
clemência. Foi quando uma das crianças vomitou. Mas quem estava na mira da
faca, quase fora de si, conseguiu, como num milagre, retirar a argola e a
entregou ao assaltante, num último instante, mas, coitada, sujou as calças.
Satisfeitos, os
bandidos pularam no carro e desapareceram. Houve quem voltasse para casa só de
chinelos, bermuda e camiseta. Pegamos as coisas restantes, abandonadas no meio
da escuridão, e as jogamos nas malas arruinadas, tudo misturado. Ajuntamos o
que sobrou (para separar mais tarde), fizemos o Boletim de Ocorrência na cidade
mais próxima, mentalizamos o prejuízo e voltamos para a estrada. Não houve
surras, nem humilhações maiores. Não ameaçaram pegar as mulheres, e ninguém
ficou ferido. A vontade era fugir do pesadelo. Aliviados, respiramos fundo. A
família estava inteira. Pelo menos fisicamente. Psicologicamente juntaremos
forças para superar. E para quebrar a tensão, eu ri, silenciosamente, me
lembrando do que se dizia de Napoleão Bonaparte, durante uma das suas inúmeras
batalhas: ‘Soldados, sangue fede? Acho que estou ferido’!”
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
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