Morrer... Dormir...
O célebre monólogo criado por William Shakespeare no ato 3,
cena 1 da peça “A trágica história de Hamlet, príncipe da Dinamarca”, trata,
entre outras coisas, de um assunto do qual fugimos, ou procuramos fugir quando
podemos. Admitamos ou não, todavia, é uma fuga inútil. Por mais alienados que
possamos ser, temos consciência de se tratar de algo de que jamais poderemos
escapar, seja qual for nossa condição de saúde ou posição econômica e social: a
morte. Só não sabemos como e quando ela irá nos colher. Ainda bem. Mas temos a
íntima certeza de que, façamos ou que fizermos, não escaparemos dela jamais. É
a grande niveladora das pessoas. Pobres e ricos, néscios e ignorantes,
poderosos e servis, belos e monstruosos etc.etc.etc. terão todos (rigorosamente
todos) esse mesmíssimo destino. A “ignorância” sobre o “quando” e o “como” é
apenas um pequeno alento. Permite-nos, pelo menos, tocar a vida como se esta
nunca fosse acabar. Ou seja, sem preocupação de verdade quanto ao seu fim.
Este, todavia, fatalmente virá e sem nenhum aviso.
Após saber da verdade sobre a morte do pai, assassinado pelo
tio e não vitimado por causas naturais, como supusera até então, pelo seu “fantasma”,
o jovem príncipe da Dinamarca se viu diante do dilema: ser ou não ser? No primeiro
caso, tinha diante de si dois caminhos a escolher, ambos sumamente ruins.
Poderia (e sua consciência dizia que esta seria a atitude digna a seguir),
vingar a morte do pai e restabelecer a verdade dos fatos. Nesse caso, todavia, certamente teria que matar o assassino e
usurpador. Passaria, pois, a ser, mesmo que supusesse por bom motivo,
assassino. O segundo caminho era mais cômodo, porém moralmente pior. Poderia
deixar as coisas como estavam, fazer de conta que continuava ignorando a verdadeira
causa da morte do pai e, ainda assim, “seria”. Não assassino, é verdade,
contudo um poltrão omisso e acomodado, um covarde e, de certa forma, conivente
com o crime (quem cala, consente).
Hamlet vislumbrou, todavia, a alternativa de “não ser”, á
qual passou a analisar. Neste caso, a negação do ser tinha o sentido de “não
existir”. E como poderia assumir essa condição de inexistência? Óbvio, pela
morte, que comparou com o sono, posto que sem a certeza de que a comparação
fosse exata. Esta poderia vir ou por mãos alheias – por exemplo por parte do
assassino do pai, ao se defender de sua tentativa de vingança – ou, então,
mediante suicídio. É sobre isso que Hamlet pondera, na sequência do seu
dramático monólogo:
“ (...) Morrer; dormir;
Só isso. E com o sono - dizem - extinguir
Dores do coração e as mil mazelas naturais
A que a carne é sujeita; eis uma consumação
Ardentemente desejável. Morrer, dormir...
Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!
Os sonhos que hão de vir no sono da morte
Quando tivermos escapado ao tumulto vital
Nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão
Que dá à desventura uma vida tão longa (...)”.
A dúvida o torturava. Morrer seria mesmo como dormir?
Conseguiria “extinguir dores do coração e as mil mazelas naturais a que a carne
é sujeita”, como era ardentemente desejável? E se, no sono da morte tivesse
sonhos, sim, mas não os agradáveis como quando se dorme vivo? E se, pelo
contrário, tivesse pesadelos atrozes e sem fim, que lhe trouxessem somente sofrimentos
eternos, muito maiores e mais intensos do que qualquer um que pudesse ter em
vida? Haveria consciência depois de morrer? Quanto? Como? A dúvida sobre esse “depois”,
que atormentou Hamlet, atormenta a humanidade desde que o primeiro homem surgiu
na terra. Há quem creia (ou alegue crer) em outro tipo de “vida” depois da
morte. Mas... saber, saber de fato, o que ocorre após nossa extinção física,
digam o que disserem, ninguém sabe.
Não tenho como não concordar com o escritor português
Antonio Lobo Antunes quando afirma: “Ninguém sabe o que é a morte, mas não faz
muita diferença porque também nunca sabemos o que é a vida”. Porventura
sabemos? Você sabe, paciente leitor? Certamente tem sua teoria a propósito, mas
saber, saber de fato, garanto que não sabe. Ninguém sabe! Nem mesmo Victor
Hugo, que expressou entusiasmo pelo fim físico, ao afirmar que “morrer não é
acabar, é a suprema manhã” sabia. Creio que em sua mente havia somente infinita
esperança, sem ínfima fração de certeza.
Nesse “dormir, talvez sonhar” foi que o príncipe da
Dinamarca vislumbrou o principal obstáculo de optar pelo não ser. Daí haver
reconhecido: “Os sonhos que hão de vir no sono da morte quando tivermos
escapado ao tumulto vital nos obrigam a hesitar”. Afinal, haveria algum sonho?
De que natureza? Valeria correr o risco? E Hamlet conclui: “e é essa reflexão que
dá à desventura uma vida tão longa”. Ou seja, entendeu que por essa causa, por
essa insolúvel dúvida, muitos preferem os sofrimentos conhecidos, por mais atrozes
e intensos que possam ser, a se arriscarem a mergulhar no desconhecido do não
ser, cujas penas e dores podem, quem sabe, ser infinitamente maiores. E, pior:
podem ser eternas.
Boa leitura.
O Editor.
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Não imaginei um destrinchamento tão complexo de uma simples frase, tão ou mais complexa que a sua explicação.
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