domingo, 31 de maio de 2015

Jornal do caos



* Por Ronaldo Bressane.


Sol



Sobre sua mesa repousam sete envelopes – todos fechados. Domingo é o pior dia para sua doença. O dia das revistas semanais, dos cadernos de cultura, das estréias, dos filmes, das peças de teatro, dos vem aí, dos e-mails e convites pras festas fechadas de segunda e terça. Apoteose ou derrota mútua. O Agente precisa se alimentar, ele sabe, ou terá outra convulsão – decidido, caminha até a padaria francesa. Caindo pelas pernas, as calças se alargam ao redor de sua magreza. Azul – a boca aberta, espaço para que o céu invada seus pulmões. Tenta não parar na banca de revistas. Consegue. Seu corpo se movimenta solene – ele nem pensava enquanto seus olhos pediam ao garçom um copo d’água. A padaria está lotada de fregueses que saltam de carros grandes e motocicletas brilhantes. Espectador de dejejuadores, o mendigo de sempre – um albino de longos e ensebados dreadlocks – flutua invisível na calçada. O garçom não parece familiar ao Agente Especial. Nada lhe parece familiar. Somente um particular – os velhos da casa em frente, que alimentam os pombos em seu jardim de lajotas vermelhas. Ele os havia observado durante toda a semana: tão pontuais, não era preciso olhar o relógio para saber que são duas da tarde. Pede outro copo d’água com gás, gelo e limão. Decide beber um copo d’ água a cada dez minutos. “Maldito E”, murmura, para si mesmo.

Não entende muito bem a língua dos fregueses: “O que têm tanto pra falar tão cedo? Quem são?”, sussurra. “Será que pensam o mesmo de mim?” No fundo, não se importa tanto com isso, e seus colegas de padaria seguem lendo revistas e jornais e comentando as coisas impressas uns com os outros e o albino observando a todos sustenido, ombro a ombro, buscando a notícia, a mensagem, o sinal. Os pombos voam pelo ar – após o décimo-terceiro copo d’água e o último saco de milho. Uma mulher lê uma revista com imagens de pessoas de que o Agente não se lembra. Como se fosse um livro de figuras com indicações em outra língua. O Agente se surpreende: “Em uma semana teria mudado o mundo a ponto de seus personagens serem outros, completamente novos, um novo elenco?”, cochicha. Ao lado da revista da mulher, uma quiche de queijo derretido salpicada de alho-poró. O mendigo observa que um senhor deixou o caderno de Imóveis numa cadeira e precipita-se para pegá-lo: em voz alta, surdina algo como “Três dormitórios, closet, living room, sala de jantar, copa, cozinha, área de serviço, sacada, um quarto de empregada, piscinas adulto e infantil, duas vagas na garagem, sauna, salão de festas, tenda de massagem ao ar livre, segurança 24 horas, qualidade de vida, qualidade de vida, qualidade de vida”. O garçom pergunta ao Agente se quer comer alguma coisa. O garçom repete: “Satisfeito?”. Aflito, parece o garçom. Muitas pessoas por satisfazer. A fome cresce. A sede. O Agente pede “Outro copo d’água gelada, por favor” – guarda os copos plásticos uns sobre outros; a luz do sol produz neles reflexos azuis e dourados: não há nuvens no céu. Nos fios elétricos suspensos pelos postes de luz, sete pombos se equilibram, fixas gárgulas.

“Qualidade de vida.”

De um deles parte um tolete de bosta branca, que cai no capô de uma pick-up. O próximo projeta seu produto sobre o dorso de uma honda shadow, e outro vem melar o vidro de uma cherokee 4X4, em intervalos regulares, até que o sétimo pombo manda sua pequena porção de merda direto sobre o quiche da mulher que lê a revista, distraída, o garfo no ar ainda lentamente se encaminhando para a pasta de queijo e alho-poró – esta, temperada pelo excremento do pombo, vem se unir à saliva da mulher dentro de sua graciosa boca. A garganta do Agente seca quando ele vê a garganta da mulher se mover suave e animalmente satisfeita, enquanto vira outra página e espeta com o garfo o último pedaço do quiche, “Hmmm”. Todos seguem suas atividades de leitura de jornais e revistas – nos fios, silenciosos, os pombos obram –; o mendigo albino pesca com o olhar um notícia no caderno de Esportes lido por um jovem com gel na juba. Mais primitivos, os olhos do Agente voam para o outro lado da rua. Abraçados, os velhos observam a tempestade branca, tranqüilos, mudos. A velha parece sorrir. Alguma coisa naqueles freqüentadores de vernissages faz o Agente pensar em Adão e Eva na ilha de Caras, o que lhe dá “vontade de vomitar”, segundo afirma. Desta vez, agüenta até o fim. Tira umas notas do bolso, deixa sobre a mesa e sai da boulangerie.

Sentado na calçada, o mendigo lê classificados. Vigilante, o Agente não pode deixar de observar, por cima de seus dreadlocks piolhentos, o caderno Cotidiano, aberto na seção de necrológios. O Agente gasta horas dando voltas em torno do quarteirão de seu próprio prédio antes de recolher-se. As casas de diversões eletrônicas não abrem aos domingos.


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Sétima parte de “Jornal do caos”, conto de Céu de Lúcifer [Azougue Editorial]

*Escritor, jornalista e editor. Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias publicações, como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA, e atua no HYPERLINK http://impostor.blogspirit.com http://impostor.blogspirit.com.




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