Ser ou não ser...
O monólogo que começa com o dilema, com a expressão de
dúvida “to be, or not to be, that is the question” – que traduzida para o
português significa “ser ou não ser, eis a questão” – conquistou inédita
repercussão mundial (no tempo e no espaço) insuperável, sobretudo, por essa frase
em especial. O leitor certamente já ouviu e, quem sabe utilizou, essa citação
nos mais variados contextos, mesmo os que nada tenham a ver com teatro e nem
mesmo com literatura. Até locutores esportivos já disseram isso na narração de alguma
partida de futebol quando um dos times se vê diante do impasse de se deve
atacar o adversário ou se defender para garantir um resultado.
O monólogo aberto dessa maneira dá início ao terceiro ato da
peça “A trágica história de Hamlet, príncipe da Dinamarca”, escrita, em
Londres, por William Shakespeare, entre os anos de 1599 e 1607 (como tudo o que
se refere ao bardo inglês, isso também gera polêmicas e controvérsias, sem que
se chegue a um consenso). Comporta tantas interpretações que apenas elas dariam
para compor, sozinhas, um alentado livro de ensaios, sobretudo filosóficos. O
curioso é que, relendo meus diários, descobri que há pouco mais de 30 anos,
cheguei a acalentar essa pretensão. O tempo passou, a vida me engolfou e
esqueci, por completo, esse ousado projeto.
Quem sabe agora possa encarar este desafio, tendo por
pretexto estas descompromissadas reflexões diárias, e assim desenvolver tão
ousada obra, texto por texto, partilhando cada um deles com você, paciente
leitor, que me dá a honra da sua fidelidade. Assunto é que não falta. Só espero
que não míngüem sua paciência e seu interesse por estes comentários
estritamente pessoais que partilho diariamente com vocês já há um par de anos.
Antes de qualquer consideração sobre o monólogo, é necessário contextualizá-lo,
embora ele vá além, muito além do mero enredo dessa produção teatral. Antecedendo
a expressão de seu profundo dilema, o príncipe Hamlet dá de cara com o fantasma
do pai, que havia sido recentemente assassinado. Este clama por vingança contra
seu assassino, seu próprio irmão, Cláudio, que além de se apossar do trono da
Dinamarca, assumiu, de lambuja, sem nenhuma cerimônia, a “cama” da sua mãe, a
rainha Gertrude.
Em princípio, o jovem príncipe cai em estado de profunda
melancolia, de aterradora depressão (pudera!). Tinha, diante de si terrível
dilema: atender ao pedido do fantasma do pai, que clamava por vingança, ou
tentar esclarecer a questão por vias legais e conseguir, dessa forma, exemplar
punição para o assassino usurpador? Você, leitor, o que faria em situação
semelhante? Hamlet decidiu se passar por louco. Urdiu, todavia, um plano, que
considerava infalível. Fez uma trupe de atores encenarem a morte de seu pai
diante de toda a corte. Seu objetivo, claro, era o de demonstrar, de forma
concreta, como numa espécie de “reconstituição policial” de um homicídio, a
culpa do tio, antes de manchar as próprias mãos de sangue.
Todavia manchou-as. Assassinou Polônio, conselheiro de
Cláudio, por engano. Pensava ter matado o tio. Ocorre que a vítima, morta por
equívoco, era pai da bela Ofélia, com quem tinha intenção de se casar. Seu
erro, porém, arruinou tudo. Nem vingou o pai e nem ficou com a mulher, pois
esta... cometeu suicídio. Inconformado com as duas mortes, a de Polônio e o
suicídio de Ofélia, seu irmão, Laerte, desafia Hamlet para um duelo. Claro que
a morte do sobrinho era tudo o que Cláudio queria. Resolveria de uma só vez
todos seus problemas. Para garantir que isso ocorreria, envenenou a ponta da
espada de Laerte, além de pôr veneno também em uma taça de vinho que seria
oferecida ao príncipe antes do duelo.
Para resumir a história, ao contrário do tradicional “happy
end” da ficção, o final foi sumamente trágico. Todos os principais personagens
– Laerte, Hamlet, Gertrude e o causador de tudo isso, Cláudio – morreram. Se
quiserem saber mais detalhes, leiam a peça ou assistam sua representação em
algum dos tantos teatros que certamente será levada à cena (como vem ocorrendo
com impressionante regularidade ao longo de mais de 400 anos). Embora não falte
movimentação nesta peça específica (e em várias outras do dramaturgo inglês) a
reflexão do herói da história sobrepuja sua ação. Ninguém, no seu tempo, havia
seguido essa linha. Shakespeare nos coloca diante das reflexões do trágico
príncipe. Hamlet tinha à sua frente esse enorme dilema, esse profundo drama de
consciência: vingar ou não a morte do pai.
É nesse contexto que entra o celebérrimo monólogo que, para
lhe refrescar a memória, paciente leitor, transcrevo abaixo, em uma das
melhores traduções para o português já feitas no meu entender, a de Millor
Fernandes (embora não queira dizer com isso que não existam outras tantas, e
boas. Existem sim, e muitas):
"Ser ou não ser, eis a questão.
Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de
angústias
E, combatendo-o, dar-lhe fim?
Morrer; dormir;
Só isso. E com o sono - dizem -
extinguir
Dores do coração e as mil mazelas
naturais
A que a carne é sujeita; eis uma
consumação
Ardentemente desejável. Morrer,
dormir...
Dormir! Talvez sonhar. Aí está o
obstáculo!
Os sonhos que hão de vir no sono da
morte
Quando tivermos escapado ao tumulto
vital
Nos obrigam a hesitar: e é essa
reflexão
Que dá à desventura uma vida tão longa.
Pois quem suportaria o açoite
e os insultos do mundo,
A afronta do opressor, o desdém do
orgulhoso,
As pontadas do amor humilhado,
as delongas da lei,
A prepotência do mando, e o achincalhe
Que o mérito paciente recebe dos inúteis,
Podendo, ele próprio, encontrar seu
repouso
Com um simples punhal?
Quem agüentaria fardos,
Gemendo e suando numa vida servil,
Senão, porque o terror de alguma
coisa após a morte -
O país não descoberto, de cujos confins
Jamais voltou nenhum viajante
nos confunde a vontade,
Nos faz preferir e suportar males que
já temos,
A fugirmos para outros que
desconhecemos?
E assim a reflexão faz todos nós
covardes.
E assim o matiz natural da decisão
Se transforma no doentio pálido do
pensamento.
E empreitadas de vigor e coragem,
Refletidas demais, saem de seu caminho,
Perdem o nome de ação".
Colhi, na enciclopédia eletrônica Wikipédia, estas
importantes observações, que têm que ser levadas em conta, para melhor
compreensão do original de Shakespeare, confrontado com várias versões da peça
(e sobretudo desse icônico monólogo): “Na imaginação popular a fala é
pronunciada por Hamlet segurando a caveira de Yorick, embora as duas ações
estejam longe de si no texto da peça. Também é importante observar que o
príncipe não está sozinho no palco: Ofélia, Polônio e o Rei estão escondidos.
Há ainda a dúvida debatida por editores de edições diversas sobre o fato de
Hamlet ver ou não o Rei e Polônio. Caso ele realmente tenha visto, talvez tenha
pronunciado indiretas através de suas metáforas”. Por hoje é só (por absoluta
falta de espaço para mais considerações).
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Na versão que li, Hamlet está no cemitério, vê o crânio do bobo da corte, e a pega em suas mãos. Não me recordo se é nesta hora que ele fala a famosa frase. Para tanto, é preciso ler a obra muitas vezes.
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