sexta-feira, 22 de maio de 2015

Ser ou não ser...


O monólogo que começa com o dilema, com a expressão de dúvida “to be, or not to be, that is the question” – que traduzida para o português significa “ser ou não ser, eis a questão” – conquistou inédita repercussão mundial (no tempo e no espaço) insuperável, sobretudo, por essa frase em especial. O leitor certamente já ouviu e, quem sabe utilizou, essa citação nos mais variados contextos, mesmo os que nada tenham a ver com teatro e nem mesmo com literatura. Até locutores esportivos já disseram isso na narração de alguma partida de futebol quando um dos times se vê diante do impasse de se deve atacar o adversário ou se defender para garantir um resultado.

O monólogo aberto dessa maneira dá início ao terceiro ato da peça “A trágica história de Hamlet, príncipe da Dinamarca”, escrita, em Londres, por William Shakespeare, entre os anos de 1599 e 1607 (como tudo o que se refere ao bardo inglês, isso também gera polêmicas e controvérsias, sem que se chegue a um consenso). Comporta tantas interpretações que apenas elas dariam para compor, sozinhas, um alentado livro de ensaios, sobretudo filosóficos. O curioso é que, relendo meus diários, descobri que há pouco mais de 30 anos, cheguei a acalentar essa pretensão. O tempo passou, a vida me engolfou e esqueci, por completo, esse ousado projeto.

Quem sabe agora possa encarar este desafio, tendo por pretexto estas descompromissadas reflexões diárias, e assim desenvolver tão ousada obra, texto por texto, partilhando cada um deles com você, paciente leitor, que me dá a honra da sua fidelidade. Assunto é que não falta. Só espero que não míngüem sua paciência e seu interesse por estes comentários estritamente pessoais que partilho diariamente com vocês já há um par de anos. Antes de qualquer consideração sobre o monólogo, é necessário contextualizá-lo, embora ele vá além, muito além do mero enredo dessa produção teatral. Antecedendo a expressão de seu profundo dilema, o príncipe Hamlet dá de cara com o fantasma do pai, que havia sido recentemente assassinado. Este clama por vingança contra seu assassino, seu próprio irmão, Cláudio, que além de se apossar do trono da Dinamarca, assumiu, de lambuja, sem nenhuma cerimônia, a “cama” da sua mãe, a rainha Gertrude.

Em princípio, o jovem príncipe cai em estado de profunda melancolia, de aterradora depressão (pudera!). Tinha, diante de si terrível dilema: atender ao pedido do fantasma do pai, que clamava por vingança, ou tentar esclarecer a questão por vias legais e conseguir, dessa forma, exemplar punição para o assassino usurpador? Você, leitor, o que faria em situação semelhante? Hamlet decidiu se passar por louco. Urdiu, todavia, um plano, que considerava infalível. Fez uma trupe de atores encenarem a morte de seu pai diante de toda a corte. Seu objetivo, claro, era o de demonstrar, de forma concreta, como numa espécie de “reconstituição policial” de um homicídio, a culpa do tio, antes de manchar as próprias mãos de sangue.

Todavia manchou-as. Assassinou Polônio, conselheiro de Cláudio, por engano. Pensava ter matado o tio. Ocorre que a vítima, morta por equívoco, era pai da bela Ofélia, com quem tinha intenção de se casar. Seu erro, porém, arruinou tudo. Nem vingou o pai e nem ficou com a mulher, pois esta... cometeu suicídio. Inconformado com as duas mortes, a de Polônio e o suicídio de Ofélia, seu irmão, Laerte, desafia Hamlet para um duelo. Claro que a morte do sobrinho era tudo o que Cláudio queria. Resolveria de uma só vez todos seus problemas. Para garantir que isso ocorreria, envenenou a ponta da espada de Laerte, além de pôr veneno também em uma taça de vinho que seria oferecida ao príncipe antes do duelo.

Para resumir a história, ao contrário do tradicional “happy end” da ficção, o final foi sumamente trágico. Todos os principais personagens – Laerte, Hamlet, Gertrude e o causador de tudo isso, Cláudio – morreram. Se quiserem saber mais detalhes, leiam a peça ou assistam sua representação em algum dos tantos teatros que certamente será levada à cena (como vem ocorrendo com impressionante regularidade ao longo de mais de 400 anos). Embora não falte movimentação nesta peça específica (e em várias outras do dramaturgo inglês) a reflexão do herói da história sobrepuja sua ação. Ninguém, no seu tempo, havia seguido essa linha. Shakespeare nos coloca diante das reflexões do trágico príncipe. Hamlet tinha à sua frente esse enorme dilema, esse profundo drama de consciência: vingar ou não a morte do pai.

É nesse contexto que entra o celebérrimo monólogo que, para lhe refrescar a memória, paciente leitor, transcrevo abaixo, em uma das melhores traduções para o português já feitas no meu entender, a de Millor Fernandes (embora não queira dizer com isso que não existam outras tantas, e boas. Existem sim, e muitas):

"Ser ou não ser, eis a questão.
Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de angústias
E, combatendo-o, dar-lhe fim?
Morrer; dormir;
Só isso. E com o sono - dizem - extinguir
Dores do coração e as mil mazelas naturais
A que a carne é sujeita; eis uma consumação
Ardentemente desejável. Morrer, dormir...
Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!
Os sonhos que hão de vir no sono da morte
Quando tivermos escapado ao tumulto vital
Nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão
Que dá à desventura uma vida tão longa.
Pois quem suportaria o açoite
e os insultos do mundo,
A afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,
As pontadas do amor humilhado,
as delongas da lei,
A prepotência do mando, e o achincalhe
Que o mérito paciente recebe dos inúteis,
Podendo, ele próprio, encontrar seu repouso
Com um simples punhal?
Quem agüentaria fardos,
Gemendo e suando numa vida servil,
Senão, porque o terror de alguma
coisa após a morte -
O país não descoberto, de cujos confins
Jamais voltou nenhum viajante
nos confunde a vontade,
Nos faz preferir e suportar males que já temos,
A fugirmos para outros que desconhecemos?
E assim a reflexão faz todos nós covardes.
E assim o matiz natural da decisão
Se transforma no doentio pálido do pensamento.
E empreitadas de vigor e coragem,
Refletidas demais, saem de seu caminho,
Perdem o nome de ação".

Colhi, na enciclopédia eletrônica Wikipédia, estas importantes observações, que têm que ser levadas em conta, para melhor compreensão do original de Shakespeare, confrontado com várias versões da peça (e sobretudo desse icônico monólogo): “Na imaginação popular a fala é pronunciada por Hamlet segurando a caveira de Yorick, embora as duas ações estejam longe de si no texto da peça. Também é importante observar que o príncipe não está sozinho no palco: Ofélia, Polônio e o Rei estão escondidos. Há ainda a dúvida debatida por editores de edições diversas sobre o fato de Hamlet ver ou não o Rei e Polônio. Caso ele realmente tenha visto, talvez tenha pronunciado indiretas através de suas metáforas”. Por hoje é só (por absoluta falta de espaço para mais considerações).

Boa leitura.


O Editor.

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Um comentário:

  1. Na versão que li, Hamlet está no cemitério, vê o crânio do bobo da corte, e a pega em suas mãos. Não me recordo se é nesta hora que ele fala a famosa frase. Para tanto, é preciso ler a obra muitas vezes.

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