quarta-feira, 20 de maio de 2015

Vida que segue


* Por Hélio Bruma

Sentei-me no mesmo banco de sempre, aqui na Praça. Diariamente, descanso neste banco, da caminhada meio penosa desde casa. Acostumei-me com isso. Daqui, vejo todo o movimento ao derredor. E descobri o prazer de observar detalhes nas pessoas que nem desconfiam que estão sendo vigiadas. Gestos, postura, uma palavra, às vezes. Importante mesmo é ver as pessoas e as coisas acontecendo, vida, e receber um ou outro cumprimento, um dedinho de prosa. E rapidamente se vai a manhã, o meu recreio, o meu exercício social.
Dia de enterro. Soube da morte do Nestor. Estourou, o coitado, disse o vizinho que socorreu a família desesperada. Estourou tudo por dentro, com as fezes saindo no vômito. Esse Nestor sempre quis ser diferente, e sentia prazer nisso, a gente percebia. A sua característica mais marcante: ser brigão. Gostava de uma briga, e muitas arranjou. Brigava por dá-cá-esse-grão, e punha tudo em polvorosa. Quem preferia a paz, fugia dele, porque difícil contê-lo. Tinha a seu favor que sempre apanhava, porque não ficavam em palavras e xingamentos as suas desavenças. Chegava aos sopapos e pescoções. Era tradição que invariavelmente levava a pior, até que aparecia alguém para restabelecer a paz. E o Nestor saía de cada refrega, às vezes mais, às vezes menos escalavrado, afirmando que com ele era assim, e dera uma lição no fulano. Chegou a ponto de ninguém mais levar a sério as suas histórias, que no máximo provocavam riso e zombaria. Estava morto, o Nestor, novo ainda, e até bem melhor da fase das bravatas.
Cedo, ainda, e já bastante movimento na rua. Decorrência do pagamento da Prefeitura, ontem. Na economia daqui, um dinheirinho bom a ser distribuído entre as Vendas e os Bares, que o disputam com avidez. Consta que dentre as Vendas, o Totonho Bastos, sob orientação da mulher, esmera-se mais nos preparativos de ofertas especiais, e acaba sendo o mais procurado. Afirmam que Dona Isaura vai a São Paulo buscar produtos para casa, cama e mesa. É, sem dúvida, a preferida das pessoas de salariozinhos melhores, com mais possibilidade de crédito. Alguns concorrentes afirmam que Totonho sabe aproveitar-se dessa maior afluência, e do interesse nas novidades chegadas ao luxo, e trabalha com gêneros de qualidade inferior, e mais caros.
Dona Nega, aposentada de um cartório lá no Macundu, é quem não faz cerimônia e protesta mais energicamente contra isso de gastar nos luxos e enfeites em prejuízo da boa mesa. Garante que com ela, não. Comida de primeira, antes de tudo, e por isso a filharada e a porção de netos cheios de saúde. “ – Ora, já se viu! – diz alto. – Não se encontra mais um canteirinho que seja em casa nenhuma. Nem para os temperos da precisão de todo dia.” Esse discurso numa paradinha aqui a meu lado, sentada no mesmo banco, a saia rodada juntada às pernas com certa dificuldade, no jeito que a caracteriza. Ninguém contesta Dona Nega, mas longe dela afirmam que age na verdade em defesa da Venda do Guto, com quem uma sua neta está para casar-se.
Ih! Lá vem Seu Paulo Coletor, também ele pontual. Terno de brim, bem passado, sapato lustroso, bonito chapéu panamá. Gente boa, Seu Paulo. Uma maldade dizerem que era saliente, que fingindo não estar atento ficava alisando o braço das moças, quando paravam para responder a seu cumprimento e às palavras amáveis que sempre lhes dirigia, elogiando-as, contando casos que as retivessem, principalmente com as professoras de fora.
Epa! Foi pensar nelas, e lá vem a Professora Flora. Do norte do Estado, boniteza de moça morena. Continuo achando que é pura invenção essa história da festa no Grupo Escolar, que teria acabado com as professoras e um magote de rapazes numa sala em que beberam alguma coisa pesada. Não quero crer que lá pelas tantas Dona Flora estava sentada no colo do Zezé, que tem aquele sítio bonito na estrada de Mangaratiba. Passou como em triunfo, brindando quem se encontrava daquele lado da rua com um discreto aceno de cabeça e um divinal sorriso.
Demora nenhuma, e aparece Seu Filhinho, magro e veloz, como sempre, anunciando estar indo para a Delegacia, porque necessário ultimar uns documentos para o enterro do falecido Nestor. Seu Filhinho sabe fazer essas coisas de documentos. Seja o que for, é safo na máquina, única, existente na Delegacia. Circula ali com toda liberdade, uma espécie de subdelegado perpétuo. Atende todo mundo que o procura, porque nenhuma repartição aceita mais qualquer papel manuscrito. Cruel aleivosia essa história de que embora não cobrando nada, despede-se dizendo estar certo de que o favorecido, na próxima vinda à cidade, trará dois franguinhos, mas sem nenhuma obrigação.
Opa! Dona Célia vem vindo. A mulher do Esteves, cada vez mais vistosa, mais elegante. E o Esteves, um caco. Consta que quase morreu dia desses, e que vive entre a casa e o hospital, tratando de exames. Coração baleado, do Esteves, talvez, coitado, por tanto amor a Dona Célia, que merece. Muito descarado o Jesuíno, funcionário do Fórum e compadre do casal. Se estivesse aqui, agora, repetiria a brincadeira marota de que não se cansa, toda vez, nas mesmas circunstâncias, quando olha demorado para a comadre e garante que na eventualidade de falta do compadre será o primeiro a procurar a viúva para assegurar-lhe que atenderá em qualquer precisão, rogando que gostaria de ter a preferência caso ela resolva proceder mal.
Hum! O Nequinha. Todo mundo sabe que ele vai comer o delicioso pastel do bar do Cacau. Todo dia, sem falta. Isso, embora a mulher atenta, que briga e recomenda cuidado, porque proibido pelo médico. Não dá importância. E nessas fugidas, para mais desastrosas, fuma também. Apesar de tudo isso, inteligente o farmacêutico Nequinha. Certa vez, homenageado por alguém que na farmácia dizia da sua fama de “bom com criança”, referindo-se aos seus acertos em prescrições, respondeu de pronto que não era isso. Humilde, explicou a todos os presentes que em noventa por cento dos casos era a natureza que agia, e curava. A ação do medicamento se restringia aos dez por cento restantes. O crédito do todo a ele era um engano, concluía sorrindo, enquanto desamassava na ponta do balcão cada uma das notas que recebia, no cacoete que vinha de longe. Pois lá vai ele aos pastéis, como num desafio.
Xi! É o enterro. Vão, então, levar o falecido à igreja. Conseguiram vencer a resistência do padre Amadeu. Diziam que o corpo não receberia a encomendação na igreja, porque o padre não achava correto, uma vez que o falecido publicamente manifestava-se simpático à maçonaria e se dizia ateu. Mas a mulher moveu céus e terra, com todo o comadrio mobilizado Filha de Maria tem privilégios que nem a ranzinzice de padre Amadeu poderia ignorar. Muita gente no enterro. O caixão chegava já à porta da igreja, e ainda havia gente na esquina da subida. Caixão de primeira. Não aceitaram o caixão da Prefeitura. E duas coroas! É esperar amanhã, para os comentários acerca de quantas pessoas no acompanhamento, na inevitável comparação, especialmente com o enterro do José Nunes, parâmetro indiscutível.
Já é hora de voltar para casa. Assim que o enterro descer da igreja, vou embora. Preciso ir me ajeitando no banco, de forma a favorecer a circulação desta perna direita, encrencada, e enfrentar o estirão. Terei cumprido a determinação médica. A patroa estará certamente com o almoço pronto, resmungando como sempre que é horrível fazer comida para apenas nós dois. Não digo nada, mas também acho que seria muito bom se na casa tivesse sobrado mais que apenas nós dois.
Lembrei-me agora! Será que não vem o Deputado? Tenho visto o pessoal dele numa correria danada, preparando a visita. Será que vai perder a oportunidade do enterro? Estando aqui, certamente fará o necrológio, como de costume. Na verdade, desconheço qualquer benefício que o Deputado Beltrão já tenha feito ou conseguido para o município, mas que é bom de fala não se pode negar. E parece ser mesmo verdade que botou a menina do Motinha em cargo importante lá na Assembleia. Dizem que vai ser produtivo para nós, porque a moça bonita é professora e saberá conduzir bem os interesses do povo daqui. A coisa parece encaminhar-se para o Motinha, desta vez, conseguir a eleição de vereador.
Por que será tanta demora na igreja? Talvez essa novidade de familiares falarem, na oportunidade. Logo que descer o enterro, vou recolher-me.
É o Tião que vem ali. Como sempre, guiado pelo Nico Pato. Cego a partir da adolescência, mantém funcionando uma oficina de marcenaria, onde fabrica móveis. Tem fama de caprichoso. Na oficina, atua com muita desenvoltura, e o Nico Pato cuida especialmente dele lidando com aquelas máquinas meio assustadoras. Dizem que montou a marcenaria com o dinheiro que trouxe de Minas, da sua cidade, onde mantinha um serviço de alto-falantes, que transmitia música e cobrava por publicidade e oferecimentos, muito comuns ali. Comandava tudo sozinho, inclusive a manutenção do equipamento. Dizem também que deixou a cidade mineira por ter descoberto que a mulher o traía com um comerciante de lá, o melhor cliente do seu serviço de difusão. Cumprimentou, ao passar, porque exige que o Nico Pato avise quando e quem deve saudar.
Vai rareando o trânsito das pessoas. O grosso do movimento acabou. Não me refiro ao movimento dos assalariados, pagando e fazendo compras. Falo dos que todo dia passam rotineiramente, na maior parte pessoas que necessitam sair, ou por determinação médica, ou porque nada têm a fazer em casa, e muitas delas porque chegam a achar hostil o ambiente familiar. Sabe-se lá por quê!
Acabou de passar o Delegado, com um praça dirigindo o jipe. Não é daqui. Indicação de um chefe político de Piraí, foi nomeado para cá. Quem já teve oportunidade de conversar com ele, diz que é gente boa, homem de certa cultura, gosta de livros e aprecia falar da história política nacional, com os seus mais destacados vultos. Garantem que possui apreciáveis fumaças jurídicas, principalmente a partir do dia em que num grupo de pessoas, contando as dificuldades que tivera em certo inquérito, num outro município maior, foi obrigado a reconhecer que o advogado do acusado era homem de artimanha, manha e patranha. A rima causou forte impacto. Por ocasião do último carnaval, esteve em grande evidência. Influenciado por ninguém sabe quem, foi examinar e interditou para bailes o salão do sobrado, por alegado risco, em face da má conservação do prédio. O fato gerou uma correria danada dos organizadores, que muito a custo conseguiram trazer um engenheiro do DER, que vistoriou o local e convenceu o Delegado que inexistia risco. Projetou-se a autoridade com o ocorrido, e mulheres e moças mais avançadinhas fazem questão de defender o Delegado, que afinal, como garantem, estava zelando pela segurança de todos. Foi a partir daí que começaram a surgir histórias de aventuras românticas, tantas, e de tal forma perigosas, que chefes políticos apressam-se na remoção do simpático Delegado Dinorá.
Poxa! Enfim, descendo o enterro. A extensa linha dos acompanhantes segue vagarosamente. Ali está o Edinho, que nunca falta. E cada vez que substituído numa alça, assume imediatamente outra, vermelho do esforço, murmurando de forma inintelígível a ladainha que todos entoam. Caso triste, do Edinho. Menino ainda, ajudava o pai nas tarefas diárias da pequena propriedade para os lados do Mato Dentro. Toda manhã, no contraturno da escola, lidava no curral, ordenhando o pequeno rebanho, enquanto o pai ia reparando alguma coisa ou curando o gado. Foi um grande susto o barulho e o grito que o fez pular de onde estava, no banquinho usado na ordenha. E viu o quadro horrível do pai sendo imprensado contra um dos mourões da porteira, sacudido pelos chifres do touro em movimentos raivosos. Por instinto, saltou por sobre as réguas, e correu até em casa, onde chegou completamente transtornado, sem fala, e desmaiou. Quando a mãe e um outro irmão mais velho, que cuidava da horta, chegaram ao curral, o pai estava morto, com diversas perfurações. O menino jamais se recuperou do choque. Fez-se adulto, dependente da mãe até hoje. E todo mundo garante que nos enterros transporta o corpo do pai.


* Poeta e escritor

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