sexta-feira, 8 de maio de 2015

O Primeiro de Maio e os professores


* Por Urariano Mota


As notícias deste primeiro de maio se traduzem agora nas greves dos professores.

Do Paraná, vem a brutal repressão da polícia contra os professores. Ali, a pedagogia que está vencendo são bombas, espancamentos e balas de borracha.  213 feridos e gritos de hurra no palácio em Curitiba.

De São Paulo, a brava mestra Renata Hummel nos informa:

“A gente leva um susto quando entra na rede pública. Na licenciatura, muito professor (que está sem entrar na sala de aula de ensino fundamental e médio há uns 15 anos) nos diz que o problema da escola pública são as aulas ‘tradicionais’, sem imaginação, sem criatividade. Que o problema está na forma de ensinar, ‘conteudista’ (com ‘decoreba’) e não ‘construtivista’ e por aí vai.... Mas mais difícil ainda é conseguir falar 5 minutos em uma sala lotada com 40 jovens ou mais, em um dia de verão, com um ventilador apenas funcionando e sem água nas torneiras.

Mais da metade de seus colegas toma estimulante ou fluoxetina para aguentar o tranco de dar aulas em duas ou três escolas diferentes, das 7h da matina às 23h; quando seu salário, mesmo trabalhando em duas escolas diferentes, cerca de 40 horas por semana (40 horas por semana são as cumpridas na escola, não as de preparação e planejamento de aulas, correção de trabalhos – essas, me arrisco a dizer, ultrapassam esse tempo em umas 15 horas a mais), com cerca de 700 alunos, não chega a R$ 2.600”.

Em Pernambuco, não é diferente. O governador, durante a campanha, prometeu um aumento de 100% para os professores. Isto mesmo: 100%.  Mas agora, no governo, diante da greve dos mestres pernambucanos, fala que tudo mudou. Os professores querem, pelo menos, a aplicação do reajuste de 13,01% referente ao Piso Nacional dos Professores para todos os mestres. Projeto de lei aprovado na Assembleia Legislativa de Pernambuco, no dia 31 de março, prevê o reajuste para menos de 10% da categoria. Eu não sei como as pessoas prometem mundos e fundos na campanha, depois retiram o prometido, e saem com a cara mais limpa deste mundo ao sol do meio-dia.

Na verdade, quando olhamos o estado a que chegou a educação, concluímos que não precisamos de um novo governo. Precisamos de um novo Estado, com E maiúsculo. Há muito, a burguesia trata os professores como novos criados. O respeito é invertido: os mestres é que devem limpar, de modo muito humilde, a ignorância dos seus superiores. Os mestres têm que ser bem qualificados, cordatos, criativos e, melhor ainda, mal pagos. Desrespeitados.

Como podemos chegar a um Brasil novo, digno da nossa riqueza humana, terceirizando a educação para profissionais miseravelmente pagos? Como sair do inferno da ignorância sem o papel fundamental dos mestres?

É inesquecível para mim o papel do formador de gerações que conheci com o  professor Arlindo Albuquerque. O velho Arlindo, como ainda o chamamos até hoje, sem a percepção de que temos hoje a mesma idade que o velho possuía quando éramos adolescentes, o mestre Arlindo Albuquerque era um homem de estatura baixa, quase obeso, atleta dos prazeres da boa mesa, prenhe no ventre e no espírito do amor pelo conhecimento.

De ânimo sempre alto, quase até o delírio, era como se o cotidiano para ele fosse uma continuação imediata, sem transição, dos seus ideais. Daí que ele chegasse a ser esquisito, daí que ele fosse tomado quase como um lunático, até mesmo pelo círculo mais íntimo, familiar. A sua esposa nos contava, quando aos domingos íamos à sua casa para almoçar, para comer e beber alimentos e lições, que o professor subia nos ônibus a cantar a Marselhesa, não em voz baixa, mas, esquecido de si, em voz alta, com um sorriso nos lábios, a cumprimentar, a dividir com as pessoas do povo o hino da revolução francesa.   

A estudante Juçara, de beleza morena, com seu porte de mocinha índia, se viva estivesse, dele evocaria o professor que a chamava de “pequenininha”. Conceição, Nazirdes, do Carmo, onde estiverem no Brasil, dele falarão como o mestre que as saudava a partir das leituras que em pé faziam em voz alta. “Grande, Magnífico”, ele lhes dizia.

Nós, os meninos, dele podemos dizer que era o mestre só possível acompanhar com os nossos queixos erguidos, para melhor vê-lo. Apreendê-lo. Para não perder na sala um só momento seu, com os nossos olhos e ouvidos despertos. Por mim, posso dizer que ele me deu um conselho fundamental, que às vezes consigo cumprir: “seja mais pessoal”, ele escreveu à margem de um texto em que eu imitava o estilo precioso de José de Alencar.

Que coisa mais feia, ele poderia dizer, de onde você copiou isso, menino?, poderia perguntar. Mas foi mais longe que um reparo, um conserto, uma censura ocasional – passou um ideal de criação: “seja pessoal”, o que significava: escreva conforme a sua experiência e índole, menino.

A outro, José Antonio Spinelli, hoje grande cientista político, o mestre Arlindo pediu que fosse até a sala dos professores. E lá, diante do nosso amigo intimado, que estava com medo de uma reprimenda, de um castigo, o mestre pediu com humildade:

- Spinelli, por favor, não me faça mais perguntas difíceis. Você me pergunta coisas que vão além da minha capacidade. Eu sou apenas um professor, compreenda.

Que mentira. Ele era apenas esta coisa rara, um professor de radical honestidade. Porque ele poderia com duas ou três citações destruir qualquer impertinência, mencionar autores sobre os quais nem sonhávamos, mandar-nos de volta para o lugar de estudantes pobres em começo de formação intelectual. Ou mesmo brandir ameaças de notas em provas de perseguição, como os professores medíocres executavam e executam, aprisionavam e aprisionam o espírito de alunos mais rebeldes até hoje. Em lugar disso, ele nos escolhia como o público ideal para ouvir Jean-Jacques Rousseau. Acreditam nisso, meninos pobres em uma escola pública a ouvir o mestre em voz alta nos contar sobre o prazer de caminhar?

Com frequência, muitas vezes repetimos um mesmo texto, pois ele nos mandava ler este gozo: “Sur la liberté de la conscience”. Eram anos de ditadura, sabíamos, e comentava-se, aos murmúrios, que o professor em 1964 fora espancado, preso, porque fizera parte da direção do Serviço Social contra o Mocambo. O texto no livro de Marcel Debrot vinha sempre a calhar, e era em estado de êxtase que o mestre nos fazia ler “Sobre a liberdade da consciência”.

- Vejam a beleza. Repitam esta frase. O título é uma coisa extraordinária – e silabava em ritmo lento “sur la liberté de la conscience”.

E líamos, e passávamos pela Revolução Francesa.
Esse francês a gente lembra porque uma lição mais funda vinha naquelas aulas do professor Arlindo Albuquerque. Em lugar da conjugação mecânica de verbos ele nos legava um valor permanente de humanidade. Sem trombetas, de bata azul, em um subúrbio que hoje chamam de periférico, de nome Água Fria, ninguém nunca nos falou tão bem sobre a felicidade que é a liberdade de consciência.

Penso que entenderão por que lembro esse mestre de escola pública, neste primeiro de maio, quando são desprezados, espancados e reprimidos os professores brasileiros.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.


  

Um comentário:

  1. Que amor lindo, que reconhecimento magnífico, Urariano! Eu tive professores bons, talvez semelhantes em sabedoria quanto a este seu, mas não mais talentoso. E olha que eu frequentei escola diariamente por 27 anos. Não é pouco não.

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