O Primeiro de Maio e os professores
* Por
Urariano Mota
As notícias deste
primeiro de maio se traduzem agora nas greves dos professores.
Do Paraná, vem a
brutal repressão da polícia contra os professores. Ali, a pedagogia que está
vencendo são bombas, espancamentos e balas de borracha. 213 feridos e gritos de hurra no palácio em
Curitiba.
De São Paulo, a brava
mestra Renata Hummel nos informa:
“A gente leva um susto
quando entra na rede pública. Na licenciatura, muito professor (que está sem
entrar na sala de aula de ensino fundamental e médio há uns 15 anos) nos diz
que o problema da escola pública são as aulas ‘tradicionais’, sem imaginação,
sem criatividade. Que o problema está na forma de ensinar, ‘conteudista’ (com
‘decoreba’) e não ‘construtivista’ e por aí vai.... Mas mais difícil ainda é
conseguir falar 5 minutos em uma sala lotada com 40 jovens ou mais, em um dia
de verão, com um ventilador apenas funcionando e sem água nas torneiras.
Mais da metade de seus
colegas toma estimulante ou fluoxetina para aguentar o tranco de dar aulas em
duas ou três escolas diferentes, das 7h da matina às 23h; quando seu salário,
mesmo trabalhando em duas escolas diferentes, cerca de 40 horas por semana (40
horas por semana são as cumpridas na escola, não as de preparação e
planejamento de aulas, correção de trabalhos – essas, me arrisco a dizer, ultrapassam
esse tempo em umas 15 horas a mais), com cerca de 700 alunos, não chega a R$
2.600”.
Em Pernambuco, não é
diferente. O governador, durante a campanha, prometeu um aumento de 100% para
os professores. Isto mesmo: 100%. Mas
agora, no governo, diante da greve dos mestres pernambucanos, fala que tudo
mudou. Os professores querem, pelo menos, a aplicação do reajuste de 13,01%
referente ao Piso Nacional dos Professores para todos os mestres. Projeto de
lei aprovado na Assembleia Legislativa de Pernambuco, no dia 31 de março, prevê
o reajuste para menos de 10% da categoria. Eu não sei como as pessoas prometem
mundos e fundos na campanha, depois retiram o prometido, e saem com a cara mais
limpa deste mundo ao sol do meio-dia.
Na verdade, quando
olhamos o estado a que chegou a educação, concluímos que não precisamos de um
novo governo. Precisamos de um novo Estado, com E maiúsculo. Há muito, a
burguesia trata os professores como novos criados. O respeito é invertido: os
mestres é que devem limpar, de modo muito humilde, a ignorância dos seus
superiores. Os mestres têm que ser bem qualificados, cordatos, criativos e,
melhor ainda, mal pagos. Desrespeitados.
Como podemos chegar a
um Brasil novo, digno da nossa riqueza humana, terceirizando a educação para
profissionais miseravelmente pagos? Como sair do inferno da ignorância sem o
papel fundamental dos mestres?
É inesquecível para
mim o papel do formador de gerações que conheci com o professor Arlindo Albuquerque. O velho
Arlindo, como ainda o chamamos até hoje, sem a percepção de que temos hoje a
mesma idade que o velho possuía quando éramos adolescentes, o mestre Arlindo
Albuquerque era um homem de estatura baixa, quase obeso, atleta dos prazeres da
boa mesa, prenhe no ventre e no espírito do amor pelo conhecimento.
De ânimo sempre alto,
quase até o delírio, era como se o cotidiano para ele fosse uma continuação
imediata, sem transição, dos seus ideais. Daí que ele chegasse a ser esquisito,
daí que ele fosse tomado quase como um lunático, até mesmo pelo círculo mais
íntimo, familiar. A sua esposa nos contava, quando aos domingos íamos à sua
casa para almoçar, para comer e beber alimentos e lições, que o professor subia
nos ônibus a cantar a Marselhesa, não em voz baixa, mas, esquecido de si, em
voz alta, com um sorriso nos lábios, a cumprimentar, a dividir com as pessoas
do povo o hino da revolução francesa.
A estudante Juçara, de
beleza morena, com seu porte de mocinha índia, se viva estivesse, dele evocaria
o professor que a chamava de “pequenininha”. Conceição, Nazirdes, do Carmo,
onde estiverem no Brasil, dele falarão como o mestre que as saudava a partir
das leituras que em pé faziam em voz alta. “Grande, Magnífico”, ele lhes dizia.
Nós, os meninos, dele
podemos dizer que era o mestre só possível acompanhar com os nossos queixos
erguidos, para melhor vê-lo. Apreendê-lo. Para não perder na sala um só momento
seu, com os nossos olhos e ouvidos despertos. Por mim, posso dizer que ele me
deu um conselho fundamental, que às vezes consigo cumprir: “seja mais pessoal”,
ele escreveu à margem de um texto em que eu imitava o estilo precioso de José
de Alencar.
Que coisa mais feia,
ele poderia dizer, de onde você copiou isso, menino?, poderia perguntar. Mas
foi mais longe que um reparo, um conserto, uma censura ocasional – passou um
ideal de criação: “seja pessoal”, o que significava: escreva conforme a sua
experiência e índole, menino.
A outro, José Antonio
Spinelli, hoje grande cientista político, o mestre Arlindo pediu que fosse até
a sala dos professores. E lá, diante do nosso amigo intimado, que estava com
medo de uma reprimenda, de um castigo, o mestre pediu com humildade:
- Spinelli, por favor,
não me faça mais perguntas difíceis. Você me pergunta coisas que vão além da
minha capacidade. Eu sou apenas um professor, compreenda.
Que mentira. Ele era
apenas esta coisa rara, um professor de radical honestidade. Porque ele poderia
com duas ou três citações destruir qualquer impertinência, mencionar autores
sobre os quais nem sonhávamos, mandar-nos de volta para o lugar de estudantes
pobres em começo de formação intelectual. Ou mesmo brandir ameaças de notas em
provas de perseguição, como os professores medíocres executavam e executam,
aprisionavam e aprisionam o espírito de alunos mais rebeldes até hoje. Em lugar
disso, ele nos escolhia como o público ideal para ouvir Jean-Jacques Rousseau.
Acreditam nisso, meninos pobres em uma escola pública a ouvir o mestre em voz
alta nos contar sobre o prazer de caminhar?
Com frequência, muitas
vezes repetimos um mesmo texto, pois ele nos mandava ler este gozo: “Sur la
liberté de la conscience”. Eram anos de ditadura, sabíamos, e comentava-se, aos
murmúrios, que o professor em 1964 fora espancado, preso, porque fizera parte
da direção do Serviço Social contra o Mocambo. O texto no livro de Marcel
Debrot vinha sempre a calhar, e era em estado de êxtase que o mestre nos fazia
ler “Sobre a liberdade da consciência”.
- Vejam a beleza.
Repitam esta frase. O título é uma coisa extraordinária – e silabava em ritmo
lento “sur la liberté de la conscience”.
E líamos, e passávamos
pela Revolução Francesa.
Esse francês a gente
lembra porque uma lição mais funda vinha naquelas aulas do professor Arlindo
Albuquerque. Em lugar da conjugação mecânica de verbos ele nos legava um valor
permanente de humanidade. Sem trombetas, de bata azul, em um subúrbio que hoje
chamam de periférico, de nome Água Fria, ninguém nunca nos falou tão bem sobre a
felicidade que é a liberdade de consciência.
Penso que entenderão
por que lembro esse mestre de escola pública, neste primeiro de maio, quando
são desprezados, espancados e reprimidos os professores brasileiros.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Que amor lindo, que reconhecimento magnífico, Urariano! Eu tive professores bons, talvez semelhantes em sabedoria quanto a este seu, mas não mais talentoso. E olha que eu frequentei escola diariamente por 27 anos. Não é pouco não.
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