Intensidade 1
* Por
Urda Alice Klueger
(Para Eduardo Venera
dos Santos Filho)
Foi ontem ou foi no
outro milênio? Não sei, a pedra estava ali como parecia que sempre estivera,
basalto misturado com outras coisas de um antigo derrame vulcânico, rodeado de
espuma branca, com uma marca sambaquiana e o grande oceano Atlântico por tudo –
houvera então a lua, e agora havia o sol? Essas coisas podem acontecer no mundo
do amor; é um mundo onde tudo é possível. E se então houvera um homem de
jaqueta azul, agora havia uma fada de olhos claros, e filetes de prata se
derramavam no ar e nos ligavam a todos, a ele, à fada, a mim...
No outro tempo houvera
menos vegetação – a restinga, agora, se repovoara de plantas, estava densa,
como que escondendo lembranças, mas a fada era de verdade e vinha de lá daquele
tempo de tanta intensidade de vida que era complicado viver, mas tão bom, mas
tão bom estar-se vivo então! Aquela noite de lua e de frio ali naquela pedra
valia por uma existência, era uma florzinha que valia tanto quanto o imenso
buquê de intensidade que fora a grande história de viver lá no outro milênio,
tão grande, maravilhosa e densa que bastava aquela história, ou aquela noite de
lua, para a vida ter valido a pena. Dou-me conta, agora, que muitas pessoas
passam todo o seu tempo no mundo sem ter uma história, e para mim houve tanto,
tantos buquês e tantos momentos de infinito valor, que quando se estilhaçou a
taça da felicidade e já não havia como reunir os fragmentos de cristal,
permaneci atrelada ao mundo por aqueles filamentos de saudade e de dor, pois aquele
tanto de plenitude que bebera daquela taça valia por uma intensa vida inteira.
E o milênio se fora e
as décadas correram com a lentidão que há quando se espera um milagre que se
acha que nunca virá, e só era possível o continuar caminhando porque lá atrás,
no outro tempo, tudo estivera tão cheio de lua e de sol, e houvera coisas como
a noite de luar naquela pedra que um dia fora lava que escorrera de um vulcão
esquecido, e por momentos assim era possível continuar-se vivendo.
Mesmo depois de tanto
tempo, a pedra não parecia ter sofrido nenhum milímetro de desgaste, acossada
que estava, todo o tempo, pelo grande mar-oceano e eu até me espantei com a
pujança da vegetação de restinga que crescera tanto – mas espanto muito maior
era a presença da fada, emergida lá de dentro do tempo, vinda de uma semente do
outro milênio, boa e generosa, coração grande para entender tudo, espargindo pó
de pirlimpimpim no meu entorno e dando o sentido para toda aquela espera. Não
havia que ter apresentações – os filetes de prata que vinham lá do passado e
nos uniam a todos eram suficientemente claros para que se pudesse ter a certeza
de tudo. E então era tão bom, tão bom, que não importava que a pedra que estivera
coberta de lua estivesse agora coberta de sol – o dia era único e especial,
desses dias em que se devem fazer coisas boas como comer doces, para sacralizar
a intensidade.
Blumenau, 09 de Maio
de 2015.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR,
autora de mais três dezenas de livros, entre os quais os romances “Verde Vale”
(dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).
Acho incrível a sua capacidade de transformar o que parece comum em algo incomum, de um jeito que se torna impossível não querer viver algo semelhante, ainda que não se tenha sentidos e sentimentos tão fortes, e muito menos as palavras certas para contar.
ResponderExcluir