O feminismo de Machado de Assis
O professor e pesquisador de literatura brasileira, Mauro
Rosso – destacado ensaísta e escritor, além de palestrante e conferencista –
publicou, em 2008 (não consegui precisar a data exata), na revista de
literatura e artes “Germina”, instigante matéria, intitulada “Machado e a
mulher”. O texto em questão, informativo e esclarecedor, trata de um dos
aspectos que mais chamam a atenção na prolífica e incomparável obra do nosso “Bruxo
do Cosme Velho”. Ou seja, o que muitos pesquisadores caracterizam como seu
“feminismo”. Como tudo o que se refere ao nosso maior escritor, pioneiro em
vários sentidos, quer no que se refere a estilo quer, e principalmente, à sua
variada e eclética temática, esse aspecto merece, também, análise cuidadosa,
atenta, criteriosa e a mais didática possível, para que possa ser devidamente
assimilado e valorizado pelo leitor.
Mauro Rosso inicia, assim, seu citado artigo: “Machado
sempre escreveu sobre mulheres e para mulheres. Os amores e frustrações
femininos eram seus temas constantes. A mulher sempre foi personagem primordial
da sua ficção. Em Machado, o feminino confirma-se como uma categoria literária
– eis um sinóptico intróto que muito bem caracteriza um dos cernes da sua obra
ficcional (...)”. “Quer dizer, então, que Machado de Assis era feminista
convicto!”, concluirá o atento leitor, com base nesta (e em outras tantas
informações). Bem, depende de que feminismo estamos falando. Se estivermos
pensando no movimento internacional organizado, sobretudo, na Europa, de cunho
ideológico, que lutou (e luta) pela irrestrita igualdade de direitos e deveres
entre os dois gêneros, tal conclusão será um tanto açodada, se não exagerada.
Afinal, o escritor era fruto da mentalidade do seu tempo, mesmo que vários e
vários passos adiante da esmagadora maioria de seus contemporâneos. Mas se
pensarmos, exclusivamente, pelo lado do pioneirismo, pelo da valorização da
mulher como ser humano inteligente e sensível que é, e como tema, portanto, de
sua literatura, essa caracterização é não
somente válida, como oportuna.
Mauro Rosso, em outro parágrafo do seu lúcido artigo, lança
luz sobre isso: “Sem se constituir propriamente em explícito ‘defensor dos
direitos da mulher’ – muito menos um ‘dialético feminista’ – Machado era
convicto de que as mulheres deviam ser instruídas e não permanecer atadas á
vida doméstica, ao mesmo tempo sempre preocupado e atento para as necessidades
emocionais, afetivas e mesmo sexuais das mulheres. Desde o início da sua
gestação ficcional em prosa, Machado traçou caminhos próprios e peculiares para
tratar das relações entre os homens e as mulheres muito além da visão ingênua
dos românticos, do discurso dos realistas e naturalistas, injetando em sua obra
muitas sementes da modernidade: criou um estilo de literatura não apenas de
observação das pessoas, mas, sobretudo, de interpretação, expondo as pequenas
coisas, as passagens a princípio inocentes, um outro lado, que muitas vezes
aludia á presença, sempre insidiosa, do inconsciente. Sempre foi um autor
interessado em prospectar as paixões humanas, em dissecar-lhes as intimidades,
em levantar questões e torná-las públicas pela voz de seus personagens. Em
Machado, o narrativo e o descritivo deu lugar ao psicológico, ao íntimo –
transcendendo o visível, o corpóreo, o material (...)”.
Embora seja até acaciano para os leitores familiarizados com
informações históricas, lembro (para os que sabem) e informo (aos que
desconhecem) que no tempo de vida de Machado de Assis não havia nada sequer
parecido com o Dia Internacional da Mulher e nem se cogitava a esse propósito e
não só no Brasil, como na maior parte do mundo, salvo em um ou outro país,
notadamente da Europa, como Inglaterra, França e os estados escandinavos. A
data comemorativa foi instituída, apenas, dois anos após a morte do escritor.
Nunca é demais saber, ou reforçar, a origem dessa celebração (que já tratei em
outras crônicas, mas que é sempre oportuno reiterar).
Em 8 de março de 1857, funcionárias de uma indústria têxtil
de Nova York, inconformadas com a desumana exploração de que vinham sendo
vítimas, decidiram sair às ruas, em passeata, para protestar e, assim, chamar a atenção da sociedade para a sua
terrível situação. Embora épico, o espetáculo não deixava de ter seu lado
patético. Era comovente, e ao mesmo tempo chocante, a visão daquelas mulheres
corajosas, destemidas e determinadas, cobertas de andrajos, com vestidos
esfarrapados e pés descalços, mas de cabeça erguida, a clamar, a exigir, a
cobrar justiça.
Naquela época, sequer se cogitava de qualquer legislação que
protegesse a integridade física e mental dos operários, não importava de que
sexo, que eram tratados pior do que animais de carga ou do que as máquinas das
indústrias. As jornadas de trabalho estendiam-se, não raro, por 16 horas ou
mais, sem férias, repouso remunerado ou qualquer outra espécie de proteção.
Havia casos de trabalhadores que eram forçados a dormir nas
próprias fábricas, ao lado de tornos ou teares, para cumprir metas de produção
estabelecidas pelos patrões, geralmente exageradas e abusivas. Teoricamente
“livres”, os operários de fins do século XIX eram tratados pior do que os
escravos. E todos achavam esse procedimento “normal”.
Nesse contexto, de abuso e de exploração, as mulheres eram
duplamente injustiçadas. Além de cumprirem as mesmas e estafantes jornadas de
seus colegas masculinos – o que lhes minava a saúde e roubava anos e anos de
vida – ainda recebiam salários irrisórios, ínfimos, ridículos, que
correspondiam à metade dos que eram pagos aos companheiros homens que exerciam
as mesmas funções.
Quando as corajosas e desesperadas participantes da
manifestação de protesto de Nova York, nesse fatídico 8 de março de 1857,
voltaram à tecelagem, para avaliar o resultado político do seu ato público,
foram criminosamente punidas. Não com suspensão, desconto de salários ou
demissão sumária, o que já seria inominável abuso. Sua punição, no entanto, foi
muito, muitíssimo pior. As ousadas trabalhadoras pagaram com a vida pelo
“atrevimento” de reivindicar direitos.
A fábrica em questão foi, conforme se comprovou
posteriormente, intencionalmente incendiada, a mando dos patrões, com as
operárias rebeldes no seu interior. As chances de escapar com vida eram
mínimas, quase nulas. Poucas tiveram essa felicidade. Tratou-se, logicamente,
de episódio de grande repercussão, que Hollywood, inclusive, transformou em filme
de grande sucesso de bilheteria.
Resultado dessa sinistra e covarde revanche patronal: 139
trabalhadoras mortas, carbonizadas, sacrificadas somente por não se conformarem
com a desumana exploração de que eram vítimas! Foi em homenagem a essas heróicas
mártires que a Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, realizada em
Copenhague, em 1910, por proposta da
ativista Clara Zelkin, instituiu o 8 de março de cada ano como o Dia
Internacional da Mulher.
Quando esse fato ocorreu, Machado de Assis estava com
dezessete anos de idade, a meses de completar dezoito. Não creio que tenha
tomado conhecimento dessa trágica notícia, embora fosse, desde moço, pessoa
muito bem informada. Tenho minhas dúvidas até se algum jornal brasileiro
veiculou a informação. Intuo que não. O interesse de Machado de Assis pelas
mulheres (e não me refiro ao natural e instintivo que nós, homens, temos por
elas, mas o que se refere, sobretudo, ao seu papel social e profissional),
portanto, não teve nada a ver com qualquer tipo de doutrinação, de influência
externa, de propaganda de eventual organização feminista (que, aliás, nem
existia no Brasil, país que ainda hoje é sumamente machista, imaginem como era
no século XIX!!). Foi intuitivo, lógico, humano e racional, contrariando,
inclusive, a patuléia ignara e chocando, por conseqüência, os descerebrados,
incapazes de pensar por si próprios que se escandalizam com o que fuja à sua
compreensão.
Boa leitura.
O Editor.
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Difícil ver esse lado afirmado sem a devida chamada de atenção para ele na obra de Machado de Assis. Nela não consegui ver isso, quando li parte de seus livros.
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