quinta-feira, 19 de março de 2015

Nadando contra a correnteza


A visão de Machado de Assis sobre Antonio Conselheiro e seus fieis seguidores, no episódio que passou para a história como a “Guerra de Canudos”, em pleno sertão baiano, diferia, e muito da versão da imprensa, sobre esse personagem e sobre suas motivações e as de seus liderados. Nesse caso, teve a coragem moral e a hombridade de nadar contra a correnteza, quando julgou justo e correto. É fato que o escritor não conheceu pessoalmente o líder rebelde. Nunca o viu, nem por fotografia (recurso que, ademais, ainda não existia e não estava, pois, à disposição dos jornais) e muito menos tinha noção do cenário dos acontecimentos, já que em toda a sua vida jamais se afastou muito da cidade em que nasceu (fez isso apenas duas vezes, por razões de saúde, e assim mesmo não foi muito longe, foi, apenas, pára Nova Friburgo, nos “arredores” da então Capital Federal). Todavia, os autores das várias reportagens igualmente desconheciam quem de fato Antonio Vicente Mendes Maciel era e qual era a causa pela qual ele e seu grupo combatiam. Ainda assim, julgaram-no e condenaram-no, sem que este tivesse direito à defesa.

Machado de Assis, é verdade, escreveu pouco a esse propósito. A “Guerra de Canudos”, ao que me parece, foi tema específico apenas de uma única crônica dele, publicada em sua coluna semanal da “Gazeta de Notícias” (“A Semana”), datada de julho de 1894, intitulada “Canção de piratas”. Incidentalmente, citou Antonio Conselheiro em mais um ou dois textos, porém com simples menções, a título de comparação. Todavia, nunca mudou de opinião e nem se deixou levar pelo “efeito manada” – o ato de aderir ao que os outros pensavam apenas por se tratar do pensamento majoritário, se não único, como tantos e tantos fizeram ao longo do tempo e fazem ainda hoje.Tanto que, ao selecionar, anos mais tarde, textos publicados na imprensa para compor seu livro “Páginas recolhidas”, incluiu a crônica “Canção de piratas” que havia escrito quando a rebelião de Canudos mal começara. Caso tivesse mudado de idéia sobre o caso, assim que este teve o trágico desfecho que conhecemos, nada o impedia de ignorá-la. Mas não ignorou. Por que? Porque não mudou de opinião.

E o que Machado de Assis escreveu nessa ainda hoje polêmica crônica (que muitos biógrafos e historiadores até preferem ignorar)? Iniciou o texto da seguinte forma: “Telegrama da Bahia refere que o Conselheiro está em Canudos com 2.000 homens (dois mil homens) perfeitamente armados. Que Conselheiro? O Conselheiro. Não lhes ponha nome algum, que é sair da poesia e do mistério. É o Conselheiro, um homem, dizem que fanático, levando consigo a toda parte aqueles dois mil legionários. Pelas últimas notícias tinha já mandado um contingente a Alagoinhas. Temem-se no Pombal e outros lugares os seus assaltos...”

Mais adiante, contesta a caracterização dada pela imprensa desse líder rebelde e de seus seguidores, da seguinte forma: “Jornais e telegramas dizem dos clavinoteiros e dos sequazes do Conselheiro que são criminosos; nem outra palavra pode sair de cérebros alinhados, registrados, qualificados, cérebros eleitores e contribuintes. Para nós, artistas, é a renascença, é um raio de sol que, através da chuva miúda e aborrecida, vem dourar-nos a janela e a alma. É a poesia que nos levanta do meio da prosa chilra e dura deste fim de século. Nos climas ásperos, a árvore que o inverno despiu é novamente enfolhada pela primavera, essa eterna florista que aprendeu não sei onde e não esquece o que lhe ensinaram. A arte é a árvore despida: eis que lhe rebentam folhas novas e verdes”.

Para Machado de Assis, o Conselheiro e seu grupo não eram “criminosos” como a imprensa os caracterizava. Eram idealistas, combatentes da liberdade, que arriscavam a vida por uma causa. Eram, quando muito, piratas, então romantizados por vários escritores. E ele prossegue, nos parágrafos seguintes: “Sim, meus amigos. Os dois mil homens do Conselheiro, que vão de vila em vila, assim como os clavinoteiros de Belmonte, que se metem pelo sertão, comendo o que arrebatam, acampando em vez de morar, levando moças naturalmente, moças cativas, chorosas e belas, são os piratas dos poetas de 1830. Poetas de 1894, aí tendes matéria nova e fecunda. Recordai vossos pais; cantai, como Hugo, a canção dos piratas...”

E, mais adiante: “Crede-me, esse Conselheiro que está em Canudos com seus dois mil homens, não é o que dizem telegramas e papéis públicos. Imaginai uma legião de aventureiros galantes, audazes, sem ofício nem benefício, que detestam o calendário, os relógios, os impostos, as reverências, tudo o que obriga, alinha e apruma... Os partidários do Conselheiro lembraram-se dos piratas românticos, sacudiram as sandálias à porta da civilização e saíram à vida livre”. Quem teria a coragem de escrever isso, sem medo de ridículo, se não Machado de Assis? E quem se atreveria a ridicularizá-lo? Certamente, ninguém. Fosse outro o autor dessa crônica e cairia em perpétua desgraça diante da opinião pública.

E o que essa gente humilde, rústica, na maior parte ignorante e crédula, procurava? Nada mais do que “apenas” melhores condições de subsistência. Além disso, buscava assistência espiritual de conformidade com a sua crença, com a rígida moral transmitida por seus pais, que não mais encontrava na Igreja formal. Os comandados de Antônio Conselheiro investiam contra o que entendiam serem os "pecados" da recém-implantada República. Entre estes, dois eram considerados os mais graves: o casamento civil e a separação da Igreja do Estado. Daí serem confundidos com os monarquistas. Aliás, estes foram tidos como os instigadores da revolta sertaneja e seus beneficiários, o que não foram.

A tragédia de Canudos – com a morte de milhares de soldados e com o impiedoso massacre dos quase doze mil moradores do aldeamento com cara e jeito de favela, dos quais só restaram quatro sobreviventes – poderia ser evitado mediante o diálogo, que em momento algum as autoridades sequer tentaram. Uma reles negociação, cedendo em um ou outro ponto, teria prevenido essa sangria desatada. Contudo, a arrogância dos “senhores feudais” impediu a solução pacífica. No Nordeste, a "lei" era a criada e imposta pelos grandes latifundiários, pelos todo-poderosos senhores de engenho. Ademais, o poder central, que nunca fez nada por aqueles brasileiros desassistidos e largados á própria sorte, não podia tolerar contestações como a de Antônio Conselheiro. Canudos passou, em pouco tempo, a ser considerada perigo sério à própria ordem constituída e á soberania nacional. Exagero, é claro.

Aqueles homens rústicos, andrajosos e miseráveis não tinham nada a perder, pois nada tinham de seu, a não ser a vida. E os historiadores José Rivair Macedo e Mário Maestri narram, em seu livro “Belo Monte, uma história da Guerra de Canudos”, o desfecho dessa tragédia no sertão: "Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo-a-palmo, na precisão do termo, caiu no dia 5 (de outubro), quando caíram seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados".

Machado de Assis, com sua incomparável sensibilidade, intuiu a justeza da luta daquele bando de homens e mulheres paupérrimos, andrajosos e famintos, mas sumamente determinados, e não entrou na onda generalizada do linchamento, da demonização e da eliminação daqueles idealistas (que fossem mesmo os tresloucados e fanáticos como eram caracterizados pela imprensa, que trocou a informação pela opinião formada na base do “ouvi dizer” ou do “acho”, ainda assim mereceriam respeito). E teve a hombridade de registrar o que pensava para a posteridade.

Boa leitura.


O Editor.

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Um comentário:

  1. Uma história mil vezes contada e representada, mas que me parece não ter ainda apresentado a sua versão definitiva. A visão de Euclides da Cunha em "Os sertões", mesmo que seja militar, me fez ver naquele povo uma força invencível.

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