Testemunha do Rio do Segundo Império
“O escritor é testemunha do seu tempo de vida, mesmo que não
se dê conta. Cabe-lhe, entre suas tantas tarefas, a de registrar hábitos,
costumes, problemas, contradições etc.etc.etc. da sua época”. Esta é a maneira
com que introduzi uma de minhas tantas crônicas, nas quais defendi, com
argumentos diferentes (mas complementares) a tese que o ficcionista
(romancista, novelista, contista) é o verdadeiro historiador de um país e,
principalmente, de uma cidade. Isto, claro, quando faz dela cenário de seus
enredos. Apresenta aos leitores do futuro a História que realmente importa: a
que registra como as pessoas eram, onde moravam, o que vestiam, como se
divertiam, o que pensavam etc.etc.etc. Nesse aspecto, Machado de Assis foi
imbatível em relação ao Rio de Janeiro, e por conseqüência, ao Brasil do século
XIX e início do XX, já que a cidade era a capital do então império e posterior
República.
Na sequência da referida crônica afirmei que o escritor “pode
até sugerir soluções para os problemas que vier a identificar. Estas, todavia,
não são atribuições suas. Compete aos líderes políticos e econômicos corrigir
distorções existentes e prevenir outras tantas para que jamais se verifiquem. E
assim, ‘la nave va’. E foi o que também Machado de Assis fez, pela boca dos
seus tantos personagens, tão vivos e verossímeis que por pouco não conseguimos
não só visualizá-los, mas apalpá-los, ouvi-los e conversar com eles. Conheceu a
fundo os cariocas do seu tempo (porquanto era um deles, ora bolas) e pintou-os,
posto que por palavras, com naturalidade, espontaneidade, exatidão e realismo,
para o conhecimento dos brasileiros do futuro (ou seja, para nós e para nossos
descendentes).
O escritor e jornalista Luciano Trigo, na introdução de seu
livro “O viajante imóvel – Machado de Assis e o Rio de Janeiro de seu tempo”,
enfatizou que o estudo da produção literária machadiana nos permite
“entrelaçar” sua vida e sua obra “com a crônica da cidade, resgatando
informações sobre a moda, os costumes, os valores e as mudanças sociais do
período, porque o Segundo Reinado é entendido normalmente como um período de
paralisia”. Ou seja, capta a “alma urbana” de determinado segmento do século
XIX e perpetua-a, com inigualável competência. Testemunha o seu tempo e
registra-o com fidelidade ímpar.
E Trigo escreve mais: “Foram 49 anos do Reinado de Pedro II
que corresponderam quase que à vida de Machado, mas foram mudanças
imperceptíveis, embora decisivas para a formação de um novo perfil da cidade,
novo perfil do carioca, mudança do comportamento, estabelecendo novos padrões
de conduta, na maneira de se vestir, nas relações de trabalho, nas relações
familiares, nas relações afetivas. Houve uma redefinição do papel das mulheres,
dos homens, então, o período foi de mudanças lentas, mas muito importantes
(...)”
Luciano Trigo escreveu outro livro, este de ficção, sobre o
“Bruxo do Cosme Velho” (que não sei se foi publicado e por qual editora). Ele
explicou que “é um romance sobre um professor de literatura que usa as lições
da obra de Machado para resolver problemas da sua vida pessoal”. Interessante
observar alguns tópicos que o autor alinhou no índice. E Trigo revela quais
são: “(...) Falo dos salões literários, da vida da Corte, da moda, dos bailes e
teatros, da política, do Morro do Livramento onde Machado nasceu, do Paula
Brito, que foi o seu primeiro patrão, da juventude de Machado, da nova mulher
carioca, das polcas, dos hotéis e pensões, do carnaval, meios de transporte
(bonde, gás, trem e telégrafo), da Rua do Ouvidor, que era o point, o lugar do
ponto de encontro, de debate literário e político da época, do último baile que
foi o da Ilha Fiscal, que marcou o fim do império, e do Bota-Abaixo, que foi um
momento decisivo da cidade, que foi totalmente remodelada pelo Pereira Passos,
o que Machado chegou a testemunhar no final da vida”.
É ou não é a lídima História, a que nos interessa e fascina, de um longo período da vida do
País, que nenhum historiador conseguiu e nem consegue hoje retratar com tanta
fidelidade, graça e humor, com a vantagem sobressalente de Machado de Assis
apresentar tudo isso com inteligente e perspicaz espírito crítico (que às vezes
descamba para a ironia e a mordacidade)? É ou não é retrato fiel do Rio de Janeiro
de quase todo o século XIX e início do XX?
Encerro este conjunto de comentários com dois parágrafos de
uma outra crônica minha, relativamente recente: “O escritor é, óbvio,
testemunha do tempo em que vive. É verdade que quem é incapaz de produzir uma
única linha de texto também o é. A diferença é que o homem de letras tem a
capacidade de registrar tipos, lugares, comportamentos, costumes etc. enfim,
tudo o que diz respeito à vida em sociedade. Afinal, escreve não
especificamente para a sua geração, mas para a posteridade, o quão remota não
se sabe, mesmo que não se dê conta. Portanto, o escritor, além de testemunha do
seu tempo, acaba por se constituir, também, em cúmplice dele. Ou seja, age, se
comporta, fala, se veste, vive etc. como todas as demais pessoas.
Mantenho o que escrevi há tempos, de que o compromisso do
homem de letras não é com a realidade. É, sim, de pelo menos sugerir a
possibilidade de um dia existir um mundo melhor do que aquele em que vive, de
justiça, paz, amor, solidariedade e todas as virtudes que admiramos, por serem
raras na atualidade (e que, ademais, sempre foram em qualquer tempo e lugar).
Seu papel é o de ser, mesmo que não ostensivamente, porém nas entrelinhas,
arauto da esperança. Deixe a realidade nua e crua para o jornalista”. E não foi
o que Machado de Assis fez ao longo de sua vitoriosa carreira?
Boa leitura.
O Editor.
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Não ouso discordar de nada.
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